Ele de novo. Já o tinha visto ali algumas vezes. Entra com as mãozitas nos bolsos e nunca se senta no mesmo lugar apesar dos bancos estarem praticamente todos vazios. Umas vezes fica ao fundo, outras nas filas da frente. Raramente no meio. Fica sentado a olhar como se estivesse numa sala de aulas, atento, sereno, com as pernas a balouçar, ouvindo o professor a ensinar uma maravilha qualquer que ele nunca havia reparado ou pensado ter uma explicação bem mais plausível que as fantásticas que lhe ocorriam para justificar certos fenómenos.
Lembro-me que houve apenas uma ocasião em que saí antes dele. Costuma ficar cerca de vinte e trinta minutos, dá um pulo do banco e vai embora com o mesmo ar imparcial e indescortinável com que chega. Para alguém tão baixinho tem uma presença notável. Passa por mim à saída e tem-me lançado um rascunho de sorriso. É desconcertante. É quase hilariante.
Numa destas quartas-feiras, autorizei-me o impulso de me dirigir a ele e sentei-me ao seu lado. Agarrou-me com os olhos gigantes, negros, pestanudos e mostrou-me os livros guardados à volta da íris. Acho que ele também viu os meus. Mas na altura não pensei nisso. Nem em nada. Deixei-o ver-me. Se o tivesse impedido com os subterfúgios habituais, quem perderia era eu porque aquela criança tinha coisas para me dizer. Um recado para me entregar. Soube-o no instante em que me sentei com ele.
- Ando a escolher um Deus. Ainda não me decidi com qual dividir os meus segredos e os meus sonhos. Preciso de um em que possa confiar e que não me falhe quando precisar mesmo da ajuda dele. A minha avó diz que antes de pararmos num sítio temos de correr o mundo inteiro porque só assim é que sabemos que não há sítio melhor em lado nenhum para nós. Com Deus é igual. Ando a ver qual é o melhor para mim. Cada Deus tem seis meses para me dizer o que tem para me oferecer. No fim vou escolher. Preciso de um Deus porque quando for grande vou ser viajante e assim não vou nem sozinho, nem sem protecção.
Das milhares de razões que me poderiam ter ocorrido para aquele menino vir à capela meio esquecida numa das poucas ruas da aldeia também ela calcada por uma contemporaneidade pouco dada à nostalgia de compassos antigos, eis a que jamais constaria da lista.
- Antes de ter escolhido os meus dois amigos tive muitos. Fui à procura dos diferentes de mim porque ser como eu sou já sei como é. Só consegui fazer amizade com uma menina. Elas são mais difíceis. Mas a minha avó disse-me para não me preocupar muito porque as meninas são diferentes dos meninos e diferentes umas das outras. Que eu teria de dar três voltas ao mundo para encontrar a melhor menina para mim. Mas que iria valer a pena. Não percebi bem mas a minha avó fala apenas quando está certa do que diz. Tem acertado comigo e por isso acredito, por agora, nas palavras dela. Ela podia ser o meu Deus. Perguntei-lhe se queria. Se aceitava ser o meu Deus. Riu-se tanto que até uns passarinhos vieram à janela ver o que passava. Depois ficou séria e respondeu-me que somos emprestados pelas nuvens aos Homens para fazer da terra outro céu. Que o nosso Pai é feito de estrelas e a nossa Mãe da luz que as faz brilhar. Para a gente não se esquecer onde pertencemos, os nossos Pais dos céus deram-nos as lágrimas. Quando a gente chora é a nossa parte de nuvem a chover uma coisa importante. Não sabia? Devemos ficar quietos quando choramos para ouvir o que diz a chuva que vem dentro de nós. Da nossa parte de nuvem.
A minha avó também tem nuvens que chovem dentro dela. É por isso que não pode ser o meu Deus.
Venho aqui há quatro meses. O tempo deste Deus está quase a acabar. Ainda não me disse nada. Fico aqui calado à espera que fale comigo. Nem sempre vou mesmo até aos seis meses, ao fim de dois ou três percebo logo que nunca vou perceber alguns deuses e vou-me embora. Este, deste sítio, ainda não falou apesar de eu me esforçar e mudar até de lugar porque pode querer falar baixinho só para mim ou sem ser com a voz. Deus usa tudo o que a dá vida para falar em seu nome. Todos os deuses fazem isto, de acordo com a minha avó.
Mas até agora nada. Até hoje.
Não é só a senhora que olha para mim e pensa. Eu também já olhei para si e fiquei a pensar.
Já me distraí consigo e espero que Deus não me tenha falado dessas vezes em que começava a imaginar porque é que senhora estaria aqui. As outras pessoas que encontro cá são todas como a minha Flor, de cabeça esbranquiçada e muitos traços na cara, que ela diz que são mapas. Mapas das viagens que mais marcaram. Se quisermos saber com foi é só olhar bem o desenho da marca. Ela conta. Se foi a direito, se teve curvas, se acabou de repente. Onde acabou, se perto dos olhos, dos lábios… A minha Flor anda a escrever a história das suas linhas e disse-me que um dia vou lê-las mas que primeiro, eu mesmo tenho de ganhar alguns traços, os que ensinam a ler os mapas da face.
Para além das pessoas velhas com medo de morrer, só vem cá outra que não é muito velha mas que não anda. Também a viu. É aquela da cadeira de rodas que fica com a cabeça para baixo até ir embora. Faz-me impressão. Como é que ela sabe se Deus está a olhar para ela se ela está a olhar para a barriga? Um dia pergunto-lhe.
Para além das pessoas velhas com medo de morrer, só vem cá outra que não é muito velha mas que não anda. Também a viu. É aquela da cadeira de rodas que fica com a cabeça para baixo até ir embora. Faz-me impressão. Como é que ela sabe se Deus está a olhar para ela se ela está a olhar para a barriga? Um dia pergunto-lhe.
Reparei em si porque trazia uma rosa enorme na camisa e fez-me pensar na minha avó, a Flor. Também gosto daqueles sapatos que trouxe com um laço verde, os seus pés pareciam duas prendas. São muito giros. A senhora não tem marcas na cara. É nova. E é bem bonita. Consegue andar. Porque é que precisa de ouvir Deus? Este Deus?
No outro dia, à mesa com a minha avó, contei-lhe sobre si. Quer saber o que ela disse?
A tentar com toda a força travar a minha parte de nuvem a querer chover, respondi-lhe que sim.
- A Flor disse que a senhora sabia qual era o melhor sítio do mundo para si e que estava a pedir desculpa a Deus por não ir. Ou coragem para o fazer.
A tentar com toda a força travar a minha parte de nuvem a querer chover, respondi-lhe que sim.
- A Flor disse que a senhora sabia qual era o melhor sítio do mundo para si e que estava a pedir desculpa a Deus por não ir. Ou coragem para o fazer.
Virei-me para a frente e chovi...
IdoMind
About God´s funny ways
9 comentários:
Não sei o que dizer desta vez!!Apenas que EU precisava ler isto!!!!
e acredite você, caí aqui sem querer hoje,por puro acaso, ou será que não!!!
:)Também não sei que dizer há mais de uma semana....Mas precisei que por isto no papel antes que desaparecesse....
Experimente dar seis meses ao acaso para falar consigo ;)para ver se existe.
O meu abraço muito forte e que a leitura lhe tenha feito o mesmo que me escrever <3
Seis meses pra mim é muito tempo,mas pode ser um instante apenas nas tais armadilhas do tempo. Senti mesmo sua falta essa semana!!bjos
Li seu texto para minha mãe pelo telefone!Chovemos!!!só queria contar.
Bom dia :)
Isto não anda muito famoso minha Márcia.Obrigado por ter partilhado esta partilha com a sua Flor ;) e obrigado sobretudo por mo ter dito.Hoje precisava MESMO de uma palavra de carinho como estas....
muitos beijos
não está facil não é miguita?... :\ pois...
e vá se lá saber porquê. simplesmente porque sim...
e é! Deus manifesta-se nas formas mais estranhas...
para ti um abracinho assim, daqueles.
<3
Ondinha
Nada nada..
É nestas alturas que gosto de me lembrar que tudo é temporário :)
Para ti outro, bem aconchegadinho e espero que estejas bem <3
Muito Bom Ido Mind Maria.
A menina escreve sempre muito bem ;*
Co-jardineiro fundador...
Obrigado...parece que só falto eu a acreditar nisso.
Já sei tudo sobre aquilo! Run for your life Le Moon!
hugss
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