julho 13, 2012

Danças?


Apesar de saber que já deveria estar a caminho, o corpo discordava recusando-se ao mais pequeno movimento para iniciar a marcha. Ficou um bom quarto de hora sentada no carro com as mãos no volante. Viu o casal da frente, na ginástica matinal do costume, a arrumar os três filhos dentro do valente Renault Clio, há muito a merecer um enterro digno.
No jardim ao lado, o Sr. Vítor resmungava do mundo, sobre o mundo, para todo o mundo. Nem ela, nos cinco anos a que ali morava, tinha conseguido largar uma singela gota de mel na disposição daquele viúvo, que ao contrário do Clio do casal da frente, já se havia enterrado vivo à nascença. 
Ainda conheceu a esposa, a Dona Laura, e muitas vezes se perguntou se seriam do tempo dos casamentos arranjados pois estavam um para o outro como Vénus estava para Plutão. Sem ser inconveniente, perguntara-lhe certa vez como fazia para não se deixar atingir pelo mau-humor do marido. Respondera a rir que a felicidade se cozinha com a dose certa de cegueira e falta de audição. E que o sexo era razoável…As gargalhadas explodiram, é claro. A Dona Laura era uma pessoa-primavera. Agradável, bonita, com uma frescura que preenchia cada uma das suas muitas rugas com flores e com sol. Exalava o ar puro de quem se basta a si mesmo para encontrar todos os bons motivos para estar vivo. Gostava-se de estar perto da Dona Laura. Partira para florir o céu há uns meses, após uma gripe mal curada que se transformou noutra coisa e no pretexto que foi preciso para justificar a missão cumprida e a necessidade de ir cumprir outra.
Estava tão atrasada!!
Regressou à Terra e percebeu que tinha mesmo de tomar uma decisão. Agora! Ou a decisão seria tomada de qualquer maneira porque a vida tem horários para cumprir. 


Se por um lado lhe agradava a ideia de pular para dentro do sonho, por outro lado os sonhos têm isso de desfechos imprevisíveis. Têm desvios esquisitos para terras nunca vistas. Personagens que não conhecemos de lado nenhum que nos dão conselhos, enviam mensagens estapafúrdias e, às vezes, só estão ali, connosco, como se afinal nos conhecessem desde o tempo das fraldas. Ou mesmo antes. Do tempo que não se mede pelo relógio porque não tem uma hora a partir da qual se contam todas as outras horas. 
Os sonhos são perigosos. Como portas entreabertas daquela divisão que nos advertiram para não abrir e não espreitar…

Ir para Moçambique como voluntária era o sonho a pedir o pulo. A proposta para ir em Setembro era a porta aberta. Escancarada. Mas ela ainda estava na parte da advertência.
Sempre fora obediente e pouco dada a meter os dedos nas tomadas eléctricas para descobrir se davam esticões. Comedida e prudente, grande parte do conhecimento adquirido proviera mais da observação, do que da experiência directa. Será razoável dizer que a sua personalidade era produto da soma de 70% de ver e aprender e 30% de fazer e saber. Sim, também gostava de cálculos. Contas com resultados positivos. Encontrava paz em operações matemáticas inteligíveis e cristalinas. Aborrecidas para muitos talvez, mas para ela absolutamente necessárias ao seu sono e à sua saúde física e mental. Calculou a idade com que estava, os preços das suas responsabilidades, o já conseguido e o a conseguir. Calculou o a perder... 
Porém, a regra dos três simples não estava a resultar. Nem qualquer outra regra. Percebeu mais tarde porquê. A fé não entrava na equação. A fé era a equação.  
“Mas porquê é que eu fui àquele jantar - chegou a perguntar-se num misto de arrependimento e fatalismo bom – Se tivesse ficado quietinha em casa a ver os Simpsons ou ido à praia, nada disto estava a acontecer”.
Mas não tinha ficado e não tinha ido. O jantar acontecera e o convite do Presidente da Associação de Ajuda Humanitária que promovera o evento, para ser voluntária em Moçambique a partir de Setembro, também.
A ponte do mundo dos sonhos para o mundo do Homem tinha sido estendida e cabia-lhe agora escolher em que margem continuar a contar as horas do relógio que não marca o tempo.
A indecisão arrasava com ela. Não era o aceitar ou o recusar que a consumia. Isso era simples. Penoso era o calvário até pedir que lhe marcassem a viagem ou antes informar  que agradecia muito, mas que ficava para uma próxima oportunidade. 
Todo aquele processo de prós e contras, de “o que tens a perder” e o “estás doida?” era muito desgastante. Já tinha passado por aquilo uma vez - uma decisão que não era uma simples decisão, mas uma Senhora Decisão. Com letra grande. A negrito!

“Se estás à espera que te dê uma palmada nas costas e diga que deves, sem qualquer relutância, arriscar, não vieste procurar a pessoa mais indicada. Antes de escolher a estrada pergunta-te porque precisas da viagem. É tudo o que tenho a dizer-te. Querida, a resposta está no motivo e é o motivo que te vai levar a fazer a verdadeira pergunta – quero fazer isto por este motivo?

Deu à chave, engatou a primeira e arrancou com um sorriso infantil cinzelado na alma. Agradeceu em pensamento àquela amiga e àquelas palavras entornadas anos antes numa esperança, para hoje regarem providencialmente uma outra.
Queria ir por Aquele motivo. Queria muito.

IdoMind
About where we should be

2 comentários:

Onda Encantada disse...

Porque sim!

É resposta mais do que suficiente para muitas coisas... até para a dona Laura...

É que há coisas na vida em que tem mesmo que ter que ser porque sim... porque é assim que decidimos, porque é assim que escolhemos, porque é assim que cedemos, porque é assim que estamos bem... e quando não estivermos o porque sim, ganha outras razões...

Simples assim.... para quê estruturar mais?


;)

Onda Encantada disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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