Havia uma criança e um pacote de
arroz. Havia eu especada olhar para ela a olhar para a etiqueta do preço.
Dava-me um pouco acima da cintura, pelo que as prateleiras mais altas
obrigavam-na a esticar o pescocito, dando a impressão de um pássaro bebé a confirmar se o
mundo acabava nas paredes do ninho ou se havia mais qualquer outra coisa que lhe
merecesse esforço de desembrulhar as asas para ir descobrir.
Depois de algum tempo desapareceu
na curva dos enlatados. Eu andava de volta da massa. Voltou acompanhada por
outra criança, mais velha e mais alta, mas com o mesmo ar, algo majestoso, aquele
que têm todas as criaturas seguras de quem são e de como chegar onde querem. Deviam
de ser irmãs. Após a verificação rápida de duas etiquetas de arroz agulha,
trocaram o pacote e afastaram-se as duas num caminhar tranquilo, claramente
satisfeito com o bom negócio que haviam acabado de concretizar. A missão fora cumprida
e os passos orgulhosos indicavam estar preparados para o corredor seguinte.
Sorri para dentro. Acho eu. Espero
eu…Sorri. Isso eu sei. Na minha cabeça surgiram duas equipas de crianças, uma
formada pelas que os pais impedem de crescer e outra pelas que os pais não
poupam ao crescimento. Aquelas duas, que não teriam mais de 7 e 11 anos, sabiam
que o arroz não nasce na despensa lá de casa mas que se vende em prateleiras de
supermercado. Que custa alguma coisa. É certo que muitas das nossas crianças
estão familiarizadas com o custo da vida. Algumas até demais. Talvez me tenha apenas
surpreendido o facto de se tratar de arroz. Que criança se preocupa com arroz? Se
neste momento perguntassem às vossas “Sabes
quanto custa um pacote de arroz” elas saberiam responder ou iriam gritar “ Oh
mãeee, o pai está esquisito outra vez!”?
Eu tive a sorte (hoje consigo
chamar-lhe assim) de ser educada por uma mãe que desconhece o significado da
palavra tabu. Assim, desde cedo que sei que existem realidades iguais e
realidade diferentes da minha. Muitas, melhores. Outras, nem por isso. E umas ainda,
nas quais já então suspeitava, que precisaria de ver-me envolvida para poder
com legitimidade dar-lhes um adjectivo qualquer. Certo é que enquanto aprendia
a ler, a escrever e a comportar-me, aprendia exactamente ao mesmo ritmo que a
vida tinha Invernos e era preciso saber sobreviver-lhes. Com a roupa que se
tinha.
Muitas crianças só conhecem o
Verão. O Inverno não passa de um capítulo curto e ilustrado nos contos que lhes lêem
antes de dormir. Isento-me de juízos de valor quanto à estação em que cada um
cria os seus filhos. A questão é que eles crescem e saem de casa. Celebram
contratos de trabalho, casam, namoram, fazem as duas coisas ao mesmo tempo,
compram, vão ao cinema, têm um carro, fazem filhos…Asneiras.
Andam por aí e em certo ponto,
cruzamo-nos. Esta é a parte que já me diz respeito.
Algumas crianças-Verão, quando
crescem, nunca cresceram muito para lá do umbigo e é por isso que não se cruzam
connosco, trespassam-nos.
Oiço-as a pedir sacríficos como se
soubessem o preço do arroz. Governam-nos, dirigem empresas, têm vidas nas mãos,
como se brincassem ao monopólio e não fizesse mal nenhum tanta
irresponsabilidade.
Mas faz. Faz muito mal.
As crianças-Verão que só
cresceram até ao umbigo, deviam ser mandadas para a primeira classe de novo para
que experimentassem na própria pele uma lição ou duas sobre respeito. Sem brinquedos. Sem favores. Sem
privilégios. Sem passadeiras vermelhas nem certezas. Fazer por merecer. Ter de lutar. Provar. Não conseguir mais. Chorar. Guardar
as lágrimas para mais tarde quando o estômago dos filhos se calasse ou o
banco parasse de pressionar. Inventar dedos para tapar buracos numa barragem que não pára de rachar. Escolher qual o medicamento que
este mês não se pode comprar. Temer..Temer muito o amanhã.
Ah crianças-Verão, se soubessem o que quer dizer
Exemplo não nos pediam o sangue sem dar uma gota do vosso. E nós talvez o déssemos de melhor vontade por
uma Primavera que chegasse a toda a gente...
Como pode falar de cortes alguém que não sabe a cor do seu próprio sangue?
E agora, como é que vamos educar adultos tão
baixinhos?
Havia uma criança e um pacote de
arroz que me deram esperança na humilhação cansada que começa a sonhar com a
Dignidade merecida.
IdoMind
about Our boat
4 comentários:
mt bom...
Olá Jeffrey
Muito bom é ter alguém a visitar-nos e a deixar um comentário tão simpático.
Obrigada :)
Estou sem palavras. IdoMind Maria you've done it again!
Gosto de ti assim, a falar da realidade pelos olhos do coração, um pouco à Valter Hugo Mãe :)
Este texto devia ser lido na assembleia :P
Love ya
Minha Shin linda...desculpe, Sr.ª Shin que agora já começa a ter uma idade respeitável :P
Cansada mana. Muito cansada da incapacidade de algumas pessoas calçarem outros sapatos. Mais apertados e muito mais gastos.
Há gente que não tem a menor noção da dor dos outros. Não têm mínimos...sequer de humanidade.
Valter Hugo Mãe, quem em dera!!! :) Adoro!
tks sis
love ya
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