outubro 05, 2012

Histórias de Piqueniques




De braços cruzados, olhava do passeio o reboque a raptar-lhe o carro. Nada a fazer. Nem aquele pestanejar meloso que sempre quisera experimentar, surtiu algum efeito e foram-lhe negados os dias que implorou para resolver a situação
Este é o início do que seria uma história simples sobre uma mulher complicada. Mas complicou-se. Parece que isso acontece muito quando as mulheres se envolvem nas histórias. Um dia têm de aprender a passar pelos campos sem estender logo a toalha para fazer um piquenique. Naquele sítio onde a relva parece mais verde. É aqui que se complica. Se calha de ser bom, no dia a seguir a mulher traz mais comida. Perde horas atrás do fogão. Dá-lhe para cantar e  põe todo o amor na mais humilde das tartes. A toalha já não é uma qualquer. Tem de ser aquela! A bonita que a tia que mora no estrangeiro lhe deu quando fez dezasseis anos. A irmã diz-lhe que é mal- empregada. A amiga pergunta-lhe se não está a ir depressa. Quer lá ela saber? A partir daquele momento, dividir sonhos, mesmo que a comer sentada no chão, deixou de ser um mero piquenique e tornou-se o princípio de uma história.

Que podia ser simples. Mas as mulheres não sabem fazer piqueniques…

Esta é a história da Martinha, uma mulher que saltou a fase da toalha e passou directamente para a mesa de jantar no 2.º andar esquerdo da sua parcela de ilusão. Acreditou e abriu todas as portas à frescura da esperança de, agora é que era, ter acertado na parte que lhe faltava.
Estendeu, feliz, a sua vida naquele pedaço de relva que nem sequer era muito verde. Não era definitivamente a mais verde. Mas acontece de facto qualquer coisa aos olhos das pessoas quando se apaixonam porque vêm o invisível e não enxergam o evidente. As cores também se baralham um pouco e os tons tornam-se meio indefinidos. Para Marta era verde alface. O resto do mundo jurava que era amarelo desfalecido. Todavia, sabido que é, que com maior ou menor gravidade, intensidade e duração já todos padeceram deste mal oftalmológico, ninguém contestou o que Marta via naquela espécie de homem.

Lamentável, mas não surpreendentemente, o sonho começou a perder cor. E o homem a revelar que não tinha nenhuma. Pelo menos, não tinha UMA cor  Tinha muitas, todas desmaiadas. Não havia nele um tom mais forte, que sobressaísse. Que no fundo, o definisse. Ser incolor não seria problema se a falta de vértebra não enfraquecesse,  com a lentidão mortífera de tão lenta, o que precisa de dois pares de mãos para sobreviver. Havia  dois pares de mãos naquela casa mas cada um a empurrar o seu lado da parede. 
E se há dias em que se acorda com a determinação imatura de fazer com que tudo volte a ser como era antes, ao tempo do “para sempre” sem ponto de interrogação, na maioria dos dias o mundo anda de caneta a jeito para corrigir e pontuar devidamente as nossas certezas... Às vezes Marta acreditava que aquele amor todo não podia ter acabado. De todas as vezes que olhava para ele, sabia que sim. Sabia igualmente o que tinha de ser feito. Seria simples. Mas esta é a história de uma mulher complicada. Marta era responsável pela felicidade de toda a gente no planeta e estava proibida de causar tristeza a quem quer que fosse. Muito menos aceitável seria contribuir para a infelicidade dos que lhe eram mais próximos. 
Não podia simplesmente abandonar aquela pessoa. Marta não abandonava. Fora ela quem trouxera a toalha e seria indelicado da sua parte levantar os pratos e ir embora, decidindo por isso ficar a colorir o desenho que só ela via.

Decorreram dois anos. Não aprendeu a refazer desenhos e não conseguiu pintar um sorriso sequer. Mas começou a ver melhor e aprendeu português. Descobriu que cobarde não quer dizer vitima. Nem alguém com azar. Que frieza não é um sinónimo de timidez, nem insensibilidade outro nome para distracção. Marta aprendeu também que o egoísmo é diferente de coragem e que trauma não pode ser usado em vez de estupidez.
Demorou muito a saber distinguir os verbos encobrir e proteger... 
Abandonou. Quando aprendeu que abandonar significava Crescer. Só quem é muito grande consegue perceber a diferença entre largar e temer perder. Largou. Deixou a toalha como estava e foi a chorar fazer o luto de um sonho.

Ainda mal havia desempacotado os restos de uma vida velha na sua casa nova e já o seu  altruísmo lhe estava a valer o carro. Parece que há contas que se pagam em prestações e aquela relação era uma dessas.
Lembrou-se que tinha de juntar bondade ao seu dicionário e fazer corresponder este substantivo à compreensão de si mesma, para que o acto de ser generosa não voltasse a ser confundido com falta de amor próprio.

Sentia-se adulta e esperta. Capaz de tomar conta de si. Com muita competência. Não havia revolta nem abrigava no coração sentimentos menores, apenas uma imensa lucidez quanto às regras mais ou menos mágicas que mantinham a vida a circular. As coisas a acontecer-LHE. Levando e trazendo. Oferecendo e tirando. Mostrando e recompensando.
A percepção destes movimentos tornava menos violento acompanhá-los.
Estaria mais atenta, sobretudo quando estivesse mais triste. Anotaria as desilusões, as preocupações e o que a irritava. Manteria um registo do que não lhe havia agrado, quer nas coisas, quer nos outros. 
Depois, à noitinha, com as emoções a descansar, tentaria destapar-se para se ver mãe daqueles filhos e os  lábios na origem daqueles ecos.  

Questionou se voltaria a cometer os mesmos lapsos linguísticos.
É que esperava voltar a sofrer da vista mas gostava de aprender palavras novas…

IdoMind

About …let me see...

3 comentários:

Onda Encantada disse...

about being true to yourself!

and about wipping off tears... :'(

Onda Encantada disse...

REMINDER!


"Sentia-se adulta e esperta. Capaz de tomar conta de si. Com muita competência. Não havia revolta nem abrigava no coração sentimentos menores, apenas uma imensa lucidez quanto às regras mais ou menos mágicas que mantinham a vida a circular. As coisas a acontecer-LHE. Levando e trazendo. Oferecendo e tirando. Mostrando e recompensando.
A percepção destes movimentos tornava menos violento acompanhá-los.
Estaria mais atenta, sobretudo quando estivesse mais triste. Anotaria as desilusões, as preocupações e o que a irritava. Manteria um registo do que não lhe havia agrado, quer nas coisas, quer nos outros.
Depois, à noitinha, com as emoções a descansar, tentaria destapar-se para se ver mãe daqueles filhos e os lábios na origem daqueles ecos.
"

IdoMind disse...

Ondinha,

é isso - uma questão de honestidade. Que terá de começar, evidentemente, connosco mesmos.

Isto está tudo bonito, está...

Devia ter estudado psicologia ;)

abraço minha Ondinha

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