Estou para florir há três
semanas. Há coisas a empurrarem-me de dentro e com tamanha vontade que já
começaram a partir-me a pele. Devem ter pressa ou um prazo qualquer porque
desde ontem que me sinto a estalar por todo o lado. Estão incansáveis a abrir
uma saída. Sinto-o em especial na zona do coração. Deve ser onde estão a pôr
mais empenho. Faz sentido começarem por me destruir pelo meio, rebentarem-me o
centro para que o resto se desfaça como uma figura na areia engolida pela maré
que enche e leva.
Andava eu sossegada a tratar da
minha vida, quando me senti empurrada pela primeira vez há cerca de dois atrás.
Não sei por onde começaram a querer a nascer, sei que devem ter mexido no que até
então tratava da simples missão de dividir o branco do preto e mandar o resto
para reciclagem. Um dia, que parecia normal, tentei agir de acordo com o
que era correcto e soube-me tão mal como se estivesse a pecar de olhos bem abertos.
Até me deu uma tontura. Iludida que era recta, não passava afinal de uma
cobarde. Toda a vida, com a vida. Tinha andado metida no comércio da felicidade.
A minha pela de outros, a de outros pela minha, a depositá-la aqui e ali e a
penhorá-la a favor do que não tinha qualquer valor até ser capaz de voltar para a resgatar e compensá-la pela má decisão.
Tentei lembrar-me quando e como foi que fiz do meu bem-estar pessoal uma moeda de troca e acho que foi sempre assim. Só
com a minha irmã tudo foi de graça, o demais chegou e partiu num negócio, só variável no volume maior ou menor de transacções. Porém, e apesar do sucesso de todas estas operações comerciais, eu
era única que não ficava feliz com as minhas próprias escolhas.
Eis o cavalo de Tróia, que de mansinho
e de pantufas, me trouxe a anarquia para dentro de casa. Antes de me empurrarem,
eu não sabia que tinha Escolha. Pensava que viver era respirar… e reagir. Habituada
a pagar o bilhete, não me tinha apercebido dos remos encostados às mãos.
De que
me queixava eu, se embarcava sem me sonhar.
Deixei então de encontrar paz na
ausência do conflito. Eu não era pacifista, havia permanecido passiva para não acordar
os animais de estimação de ninguém. Sem querer levantar poeira, nunca a varri de debaixo dos
meus pés. Inevitavelmente, aconteceu um grão ou dois entrarem nos
sapatos. Causando feridas ao fim de uns quilómetros. Imprevisivelmente, uma
ventania ou outra trouxe com ira o pó contra os olhos. Fazendo-os chorar.
Ignorar
as minhas necessidades não fez com que fossem menos necessárias. Ou realmente importantes.
Parecia que tinha descoberto que
era adoptada, depois de ter andado a enxotar vezes sem conta a sensação teimosa
de não pertencer a um lugar. Foi assim que senti as estaladas da verdade a
despertar-me do sonambulismo.
Sem rebeldia, vi-me na
adolescência do meu Destino. Eu não sabia nada e tinha a gestão do meu Caminho
para reaprender. As regras que havia seguido, com incontestada obediência,
violavam a Lei e era por isso que eu colhia tempestades quando me semeava de
resignações. Abusos. Medos.
Foi assim que começou a minha
crise. E já lá vão dois anos de medidas de austeridade. De cortes...
Impus-me a solidão e o silêncio
para ver me encontrava depois do ruído que quase me deixou surda aos ecos da
minha eternidade. Precisava ver-me e abraçar-me. Despedir-me do que estava a
mais e só pesava. Prendia. E asfixiava a audácia de pelo menos tentar.
Tenho levado este tempo a perceber por que águas quero remar o meu rumo. E a abastecer-me em terra para não morrer no mar. Pus tudo em dia e até renovei a fé, que entretanto tinha
caducado, para poder passar as fronteiras que fossem aparecendo. Andei a tomar banho a cada palavra e a cada gesto, vendo bocados meus a ir pelo ralo. E outros, tão bonitos, a despontar. Há dois anos que me ando a limpar e sinto-me,
por fim, gira e pronta para ir para a rua.
Oiço o meu nome a ser chamado. Desconheço
o que aí vem, mas reconheço quem lá vai e isso basta-me para saber que vai tudo
correr bem…
IdoMind
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2 comentários:
Assim seja!
VAI SER!
<3
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