janeiro 11, 2012

Cinco Tempos

Nem o ar era o mesmo. Sabia a ar. Dantes não sabia a nada. Era só ar. E estava ali. Por todo o lado. Para respirar e deitar fora. Agora não. Tinha gosto a ar. Eu sentia-o. Entrava por mim adentro anunciando-se. Sem querer, apercebi-me que estava a inspirar mais devagar. A expirar também. Como se num sinal de respeito pela substância invisível que me mantinha viva sem que eu lhe pedisse esse favor. Quando me fui embora não se ligava muito à vida. Era isso, vivia-se. Respirava-se. Não se dispensava grande atenção ao que me parece ser agora reconhecido como um milagre. Desde que se abrandou a respiração, viver ficou mais importante. Com essa noção, muitas outras sofreram alterações. Ainda há pouco me cruzei com duas mulheres que caminhavam lado a lado e pude ouvir uma delas dizer à outra que necessitava de acalmar-se para evitar a produção de veneno no organismo. Pegou-lhe na mão e virou-a para si. Começaram então a respirar ao mesmo ritmo, numa espécie de operação de resgate da respiração alterada de volta à regularidade. Tive de parar e ficar a observar o que deveria ser um procedimento normal em casos de descontrole emocional. Expectável até, já que só eu ficara imóvel e estupefacta, a admirar duas mulheres de mãos dadas no meio da rua a acertar respirações… Não fosse o Palácio Nacional de Mafra, julgava ter-me enganado de planeta, tão diferente que encontro esta nossa Terra. E os seus habitantes. Se pudesse conversar com alguém que me explicasse o que aconteceu enquanto estive ausente…


Vagueio perdida por aí a sentir-me um David Attenborough da espécie humana. Camuflada nas árvores a observar e a registar um meio de vida totalmente novo e desconhecido.
A questão da respiração é o elo original da cadeia de comportamentos na base desta forma de estar que por enquanto ainda não consigo qualificar de tão atordoada que me deixam os ritos praticados espontâneamente a todo o instante. Talvez esse seja um bom adjectivo. Esta sociedade que encontrei é ritualista.

Durante o dia há três períodos nos quais todos param para respirar. Toda a gente sabe que toda a gente está parada a respirar naqueles intervalos de tempo. Ficam assim uns quinze, vinte minutos. Nos primeiros dias tive tanto medo! Não sabia que estavam a fazer e olhava sempre para o céu esperando ver raios hipnóticos verdes florescentes ou uma assembleia de velhinhos de barbas brancas a pairar envoltos numa luz, a falar directamente para as mentes dos humanos. De todas as vezes que paravam eu pensava “ É agora!”  
Mas não. Ficam só parados a respirar ao mesmo tempo. Foi assim que começaram a dar valor à existência. Afinal, bastava ficarem sem ar para que deixassem de existir. A qualidade do ar passou a ser um assunto prioritário então. Grandes medidas foram tomadas face à impossibilidade química de transformar papel e metal em Oxigénio. Se tiver tempo, um dia, conto como foi que o Dia 5.   
Durante a Religação (nome destas paragens colectivas) as pessoas visualizavam o ar a entrar e a passar pelas vias respiratórias até aos pulmões, retinham-no por uns segundos e depois libertavam-no visualizando-o a sair, já como dióxido de carbono e levando consigo pedacinhos de toxinas e outros detritos que andavam por ali, dentro de cada um, a circular. Faziam isto várias vezes. Pausada e conscientemente. Percebiam a sacralidade do processo e sabiam-se eles próprios sagrados. Viam depois o ar a oxigenar todo o corpo, a levar-lhe a energia vital que tudo sustinha. Aproveitavam ainda para agradecer. Cada um sabia das suas bênçãos.
Achei interessante o facto de ninguém dirigir quaisquer pedidos à Entidade a que se Religavam. Dizia-se apenas obrigado.
Os últimos minutos da Religação eram destinados a uma reflexão comum. A cada quinhentos metros havia um dispositivo, o Cálix, onde se colocavam as mãos e se pensava numa intenção especial. Os pensamentos particulares deixados no Cálix eram coligidos e todos os dias era anunciado O Propósito. A parte final das Religações era então dedicada ao Propósito anunciado. Vim a saber mais tarde que, no inicio da nova Era, durante três anos o Propósito não mudou – curar a Terra.
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