março 06, 2013

Eu sou, tu és, nós todos somos - Medricas.

Faz frio no alpendre. A noite escureceu há muitos dias e deixei de te ver. Perdi-te o rasto na garganta do medo que veio e te levou. Não o apanhei já a mastigar-te, mas ouvi o barulho da tua alma a partir-se e a réplica apagada do grito de despedida do homem que poderias ter sido. Esse foi desfeito.Bocado por bocado. Sei-o porque um bocado era Eu e era também minha, misturada com a tua, a carne que ele comeu. Senti-lhe os dentes a dilacerar-nos o sonho e às vezes acordo com a tua imagem, preso no estômago de um monstro, aceitando que não há fuga possível além da que o teu coração te permite...

Também faz frio aí? Vais ao alpendre mirar o infinito, procurando-me na tua noite que não sei há quantos dias escureceu? Agarras de vez em quando a memória de uma piada, do querer como nunca se quis antes, de roupa encharcada, um furo no pneu e uma manhã em que não ficou nada por mostrar. Agarras? 


Agarras no que podes para me manter viva? Para fugir e vir ver como estou? Se penso em ti...? Se me encontro no alpendre com os olhos no mesmo infinito à procura dos teus. De vez em quando, lembras-te de mim? Ou o medo que te levou convenceu-te de que eu nunca existi? Que adormeceste por uns instantes, mas que agora está tudo bem.
Esse é o meu medo.
O monstro tem um quarto cá em casa e a mim convenceu-me a crescer. Tem-me partido a alma com a razão, quebra-me o espírito assim, racionalmente. Exige-me que sinta o chão e desça aonde a vida não faz uma pausa à espera que o golpe feche e a sorte aconteça e a gente acorde e um dia regresses. A ti. Para mim. Por nós.
Virou-me contra o espelho e fez-me ver só mais uma na multidão. Eu e o meu medo num espelho a selar um pacto. Era isso ou uma espécie de loucura, porque me perguntou se fazias sentido e só lhe consegui dizer que me fazias falta.
Sem sentido, é o que sinto. E lógica alguma desdiz a saudade concreta de nos ter outra vez. 

Se ao menos eu soubesse melhor o meu roteiro. Por onde estou apenas de passagem e onde tenho uma parcela de terra para fazer a minha casa. Quem me dera ser livre da ânsia de fazer tudo bem. Ando cansada da dúvida constante sobre ter falhado ou perdido o juízo. É que o respeito por ti pode não passar de orgulho com muita maquilhagem. Quanto do que não faço, não tento, não quero, é, nua e crua, uma cicatriz coberta de pó de arroz? Das roupas com que gosta de se vestir, a que melhor assenta à dor ainda é o " era porque não era para ser"...
Por tudo, tomara eu lembrar-me se era só para te visitar ou para acabar de me construir em ti.

Ao frio no alpendre juntam-se duas ou três gotas de chuva que encontram o seu fim na capa do livro que tento acabar e está difícil. Vejo as letras mas não as acasalo e não as leio. A literatura virou cinema e o filme em exibição nos meus livros é o mesmo há várias semanas.
Não corro como de costume para me abrigar da tristeza do céu, antes fico e espero que se rompa inteiro e chore comigo a existência da incerteza. No amor. Na decisão mais correcta. No porquê. No porque não. Na coragem que teme. Nos monstros que nos comem. Na dor. Nas rejeições. Nos assuntos mal resolvidos. No afinal não era bem isto. No melhor dos fins. Num futuro. 
A incerteza atrás da escolha que virá atrás de nós. 
Escolher-te-ia na certeza do bem que te quero. Fico-me pela humildade do pouco ou quase nada do que sei e pela esperança de que seja verdade tudo o que dizem sobre a escrita de Deus.

Continuo, incerta de ter acertado e cumprido o esperado.
No meu filme, estamos os dois no alpendre, ao frio e à chuva e, voltada para ti, estou a perguntar-te se também te fazes estas perguntas.
E é assim que acaba.Comigo, uma pergunta, num intervalo.Que diabo de fim para uma história. 
Se nos visses num filme, sem monstros, como seria a cena final?

IdoMind
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