abril 23, 2013

Livre


O meu pai, que hoje celebra 61 anos, queria chamar-me Zoraida. Ou talvez com "u". Nunca lhe perguntei.
A minha mãe, ligeiramente mais contida, foi quem me levou ao registo e deu-me outro nome.
Mas na verdade eu deveria ser Alice.

Gostei sempre do outro lado de tudo. 
E gostei sempre muito de fugir deste lado desta vida.
Os livros foram as portas secretas para a minha liberdade.
Espelhos feitos de água em que mergulhei para esses outros lados de quase tudo.

Quando deixei de caber na modesta estante do meu quarto, descobri que na biblioteca da minha escola também era permitida magia. Foi onde me apaixonei pela primeira vez. Ao percorrer cada légua do mar e participar na descoberta do centro da Terra, caí de amores pelos magos que sabem como criar portas que dão para sítios, corações e histórias obrigatórias onde ainda não chegou o impossível.

Desde então, o que me satisfaz é o que me fala de alternativas. De véus para verdades maiores. De reinos onde só se usa a Espada e se acredita na Honra. De Faunos. De pequenos almoços na Lua. De pessoas a fingir que são gente e se revelam bichos.Monstros... Satisfaz-me o Bem encarnado em heróis que podemos ser nós. 

As viagens na biblioteca da minha escola, alargaram-me o horizonte até ao Infinito.
E nunca mais se fechou. A nada.

Sem livros, acho que teria morrido de humanidade aos 11 anos.
Presto por isso esta homenagem singela a todos os autores, agradecendo-lhes a companhia nesta Viagem, bem mais fantástica, graças aos livros-portas que dão para o Esclarecimento, para a Imaginação, para o Amor, para a Liberdade.
Obrigado.

Deixo aqui uma passagem, curta, de um dos livros que mais me marcou e que continua a ser dos meus preferidos. Aqui vai:

"..there is an idea of a Patrick Bateman, some kind of abstraction, but there is no real me, only an entity, something illusory, and though I can hide my cold gaze and you can shake my hand and feel flesh gripping yours and maybe you can even sense our lifestyles are probably comparable: I simply am not there.” 
- Bret Easton Ellis, American Psycho


IdoMind
about Books and Writers

abril 11, 2013

Mínimos


Havia uma criança e um pacote de arroz. Havia eu especada olhar para ela a olhar para a etiqueta do preço. Dava-me um pouco acima da cintura, pelo que as prateleiras mais altas obrigavam-na a esticar o pescocito, dando a impressão de um pássaro bebé a confirmar se o mundo acabava nas paredes do ninho ou se havia mais qualquer outra coisa que lhe merecesse esforço de desembrulhar as asas para ir descobrir.
Depois de algum tempo desapareceu na curva dos enlatados. Eu andava de volta da massa. Voltou acompanhada por outra criança, mais velha e mais alta, mas com o mesmo ar, algo majestoso, aquele que têm todas as criaturas seguras de quem são e de como chegar onde querem. Deviam de ser irmãs. Após a verificação rápida de duas etiquetas de arroz agulha, trocaram o pacote e afastaram-se as duas num caminhar tranquilo, claramente satisfeito com o bom negócio que haviam acabado de concretizar. A missão fora cumprida e os passos orgulhosos indicavam estar preparados para o corredor seguinte.
Sorri para dentro. Acho eu. Espero eu…Sorri. Isso eu sei. Na minha cabeça surgiram duas equipas de crianças, uma formada pelas que os pais impedem de crescer e outra pelas que os pais não poupam ao crescimento. Aquelas duas, que não teriam mais de 7 e 11 anos, sabiam que o arroz não nasce na despensa lá de casa mas que se vende em prateleiras de supermercado. Que custa alguma coisa. É certo que muitas das nossas crianças estão familiarizadas com o custo da vida. Algumas até demais. Talvez me tenha apenas surpreendido o facto de se tratar de arroz. Que criança se preocupa com arroz? Se neste momento perguntassem às vossas  “Sabes quanto custa um pacote de arroz” elas saberiam responder ou iriam gritar “ Oh mãeee, o pai está esquisito outra vez!”?

Eu tive a sorte (hoje consigo chamar-lhe assim) de ser educada por uma mãe que desconhece o significado da palavra tabu. Assim, desde cedo que sei que existem realidades iguais e realidade diferentes da minha. Muitas, melhores. Outras, nem por isso. E umas ainda, nas quais já então suspeitava, que precisaria de ver-me envolvida para poder com legitimidade dar-lhes um adjectivo qualquer. Certo é que enquanto aprendia a ler, a escrever e a comportar-me, aprendia exactamente ao mesmo ritmo que a vida tinha Invernos e era preciso saber sobreviver-lhes. Com a roupa que se tinha.

Muitas crianças só conhecem o Verão. O Inverno não passa de um capítulo curto e ilustrado nos contos que lhes lêem antes de dormir. Isento-me de juízos de valor quanto à estação em que cada um cria os seus filhos. A questão é que eles crescem e saem de casa. Celebram contratos de trabalho, casam, namoram, fazem as duas coisas ao mesmo tempo, compram, vão ao cinema, têm um carro, fazem filhos…Asneiras.
Andam por aí e em certo ponto, cruzamo-nos. Esta é a parte que já me diz respeito.
Algumas crianças-Verão, quando crescem, nunca cresceram muito para lá do umbigo e é por isso que não se cruzam connosco, trespassam-nos.

Oiço-as a pedir sacríficos como se soubessem o preço do arroz. Governam-nos, dirigem empresas, têm vidas nas mãos, como se brincassem ao monopólio e não fizesse mal nenhum tanta irresponsabilidade.
Mas faz. Faz muito mal.
As crianças-Verão que só cresceram até ao umbigo, deviam ser mandadas para a primeira classe de novo para que experimentassem na própria pele uma lição ou duas sobre respeito. Sem brinquedos. Sem favores. Sem privilégios. Sem passadeiras vermelhas nem certezas. Fazer por merecer. Ter de lutar. Provar. Não conseguir mais. Chorar. Guardar as lágrimas para mais tarde quando o estômago dos filhos se calasse ou o banco parasse de pressionar. Inventar dedos para tapar buracos numa barragem que não pára de rachar. Escolher qual o medicamento que este mês não se pode comprar. Temer..Temer muito o amanhã.

Ah crianças-Verão, se soubessem o que quer dizer Exemplo não nos pediam o sangue sem dar uma gota do vosso. E nós talvez o déssemos de melhor vontade por uma Primavera que chegasse a toda a gente...
Como pode falar de cortes alguém que não sabe a cor do seu próprio sangue?
E agora, como é que vamos educar adultos tão baixinhos?

Havia uma criança e um pacote de arroz que me deram esperança na humilhação cansada que começa a sonhar com a Dignidade merecida.

IdoMind
about Our boat



abril 09, 2013

Sem querer, querer-te




Amor, como estás? 
Quis perguntar-te mil vezes. Sentei-me outras tantas aqui, como hoje, na esperança que os meus dedos fizessem o que fazem sempre e se largassem a dançar magicamente sobre o teclado, gerando a poesia que te fala de mim e pergunta por ti, num género de diálogo solitário. Anónimo. Recebido.
Mas acho que esgotei a minha quota de magia. Os meus dedos não monologam há meses. Não se movem, nem mesmo diante da página em branco que outrora possuíam bestialmente. Avidamente, a emprestar voz ao meu coração. Davam-se tão bem. Vejo-os agora de costas voltadas e quem paga sou eu, que me levanto a meio da noite para pôr a alma a gritar e nem a ponta da mordaça descubro para que possa ao menos suspirar.
Às vezes parece que vou desaparecer num estrondo e por todo o lado vão haver bocados de prosa colados às paredes, a escorrer pelas portas, derramados pelo chão. Os meus bocados por dizer que não aguentaram mais e transbordaram-me sem pedir licença. Quem sou eu, incapaz de escrever?
Se calhar sequei mesmo. Finalmente. Como naquele filme, de tanto bater o meu coração parou...

Talvez tenha andado a mandar muito em mim. Ordeno-me a esta vida com pessoas de carne e osso e cheiro e coisas para dar e para me tirar. Obrigo-me a ficar e a dizer aos sonhos que já não são bem-vindos. Que me deixem em paz à procura do lugar que sempre rejeitei. Sabes, penso que a liberdade é a mais engenhosa invenção de Deus. Para não morrermos de tristeza, temperou-nos com insatisfação. É por isso que continuamos. Uma e outra uma vez, depois da que jurámos ser a última. Porque um dia… 

Um dia…Vamos ser livres para sermos nós! Para, sem culpa, escolher uma existência simples na margem de um rio. De todos os rios que desaguam em nós há imenso tempo, indicando por onde e quando ir. Um dia vamos. Até à exaustão e até ao fim e ao fundo das interrogações suspensas a cada viagem feita no sofá. Das perguntas a pairar nas ausências que temos sem mexer sequer um pé. Na cama. Ao lado de alguém. Que não é ao encontro de quem o espírito sai para ir tocar. 
Um dia…Um dia vamos amar a sério. Acordar logo a cantar. Ter vontade de dar beijos que entram pelos outros adentro e lhes espreitam as dores. E os tesouros. 
Um dia vai estar tudo certo...
E um dia vamos esquecer todos estes dias da falta daquilo que ainda não conseguíamos dizer o que era.

Um dia vai ser fácil ser eu sem ti.
Estar na minha vida, sem me ocorrer assim de repente como estará a tua. Desculpa. Perdoa-me a delonga em desprender-te. Em apagar-te. De uma vez por todas. Comecei por forçar o exorcismo, apenas para acabar por aceitar que é aos poucos que os fantasmas se expulsam.
Às fugidas. Como faço quando vejo o teu carro estacionado pelos lugares que já foram comuns.
Mas esta noite sonhei contigo e precisei disto, de vir à superfície tornar verbo o que passa na profundidade na qual não voltei a ser encontrada.Ninguém voltou a descobrir-me o caminho que tu fazias de olhos fechados.
Por isto tudo - Amor, como estás?

IdoMind

about you fading away
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...