dezembro 22, 2009

Passo Um


Lá, onde dói, é onde devo de ir para ver e arrancar a lança da minha angústia. São os meus “nem pensar” que devo repensar em nome da vida que quero para mim. É a minha felicidade submersa que o exige. Tenho a sensação de a procurar no escuro de luz apagada. Porque eu gosto dos caminhos difíceis. Aqueles mais compridos que dão a volta e me trazem ao mesmo lugar. Que me cansam até deixar de perceber a diferença entre viver e apenas respirar. Se não gostasse, há muito teria acendido a lâmpada que trago nas mãos. Mas nem pensar em iluminar certos espaços. Porquê? Porque dói revelar as fendas, as fugas e as falhas da minha casa, afinal, imperfeita.

Certas coisas e palavras que nem pensar em fazer ou dizer. Algumas pessoas a quem nem pensar em pedir o que quer que seja. Mesmo que precise muito. Desculpas e obrigados que nunca atravessaram a barreira entre a cabeça e os lábios porque nem pensar em proferi-los. Dúvidas que nem pensar em esclarecer. Fraquezas que nem pensar em mostrar que tenho. A fragilidade de mulher que nem pensar em admitir. Estes sentimentos agarrados à minha humanidade que nem pensar em partilhar...

Lá, onde dói, é para onde me dirijo porque Tudo o que há sou Eu e Eu sou Tudo o que há. A faca que fere e o golpe que sangra. As costas e o chicote. No fim temo-me apenas a mim mesma.

Eu sou a que se vê a ser também o que não é e que decide Mudar. A que se silencia para se ouvir. Quieta para sentir de onde vem a dor. Reconhecê-la. E depois… apagar o “nem pensar” e escrever “porque não?”.
IdoMind
About being painfully honest

dezembro 19, 2009

O que foi e o que pode ser

Jamais saberei que paisagens perdi ao longo dos trilhos que abandonei para continuar por este que atravesso. Onde me levariam esses caminhos em cuja entrada tantas vezes parei procurando adivinhar o que se ocultava para lá da curva, onde a visão acaba e a fé começa. Prostrada pelo medo das pedras e das armadilhas, guardiãs da felicidade prometida, continuei pela vereda conhecida. De longe mais segura. Até ter deixado de o ser. Não há estradas sem pedras. Não há tesouros sem armadilhas. Hoje sei-o.

Jamais saberei que pessoas ficaram por conhecer nos sítios que evitei, para permanecer neste quadrado quentinho e confortável, em que me aninho sobre mim mesma porque é difícil cair no mundo. Essa bola com vontade própria que quero tanto entender. Ver os porques mesmo antes dos porquês. Tornar a minha colheita menos dolorosa. Receber apenas quem me quer receber. Ser imune aos nãos que fazem ferida. Mas nada há que não se colha.Nem as omissões.Pessoa alguma entra sem ser desejada.E todos temos espadas. Que usamos. Hoje também o sei.


Onde estaria eu agora, se não estivesse aqui? Com quem e como? Seria eu feliz? Seria eu esta soma única de pessoa feita de alegrias e um bom punhado de noites mal dormidas?
Jamais saberei.

Se podia ter feito diferente? Sim. Podia ter decidido desnudar-me do orgulho. Dos pequenos egoísmos. Daquilo que não importa e mostrar-me, limpa, sem as capas que me protegeram de viver. Que adiaram os voos imprevistos que os sonhos marcam no descanso da razão.
Podia ter confiado mais. Em mim… Podia ter olhado melhor. Para mim...
Esperei que lá fora me dissessem como era cá dentro e não vi que tudo lá fora pedia que eu mostrasse o que estava cá dentro. Que o desse porque era bonito. Porque era bom. E tudo que ofereci foram pedaços daquilo que sou. Pedaços que não enchem, que não satisfazem, que não matam a fome de Amor que todos sentimos.

Sim, podia ter sido diferente. Se não tivesse tremido quando o pés exigiam firmeza. Se não tivesse duvidado tanto quando bastava uma decisão. Se as rédeas dos meus cavalos nunca tivesses saído destas mãos. Hoje seguro-as, depois de tanto empurrar o chão para me erguer das quedas. Se eu não paralisasse a cada convite para dançar.

Quanto ficou para trás sempre que não quis seguir em frente...

Tudo o que É, é criação e o que foi não volta assim a ser. Não igual. Não da mesma maneira. Com o mesmo cheiro ou sabor que não quis experimentar.
Jamais saberei se seria capaz de fazer bem aquele trabalho que nunca tinha feito, nem quis fazer.
Jamais saberei se aquela rapariga do restaurante, que apanhei a chorar, precisava de ajuda. De uma amiga.
Jamais saberei se a minha avó sabia o quanto eu a admirava. Que ainda menina, já pedia nas minhas orações para ser sempre forte como ela. Agora restam apenas estas saudades.
Jamais saberei se quem partiu teria ficado se eu tivesse falado. Se o silêncio que uso para me murar tivesse sido quebrado pelas palavras e as desculpas sentidas que morreram no pensamento.

Eu jamais saberei o que ficou por sentir na vida que não escolhi ao lado de alguém. Junto de ti, numa tarde de domingo qualquer a ver filmes deitados no sofá com a manta de lã por cima. Nunca saberei...


Mas acredito na Bondade que conhece a dureza de ter um corpo. Acredito que nos dá o que precisamos. Uma e outra e outra vez porque nos quer ver chegar... Acredito no que tem de ser porque escolhemos que fosse. Acredito em portas abertas.
Que eu as veja... e não tema mais entrar.

IdoMind

about living and learning

dezembro 07, 2009

As pequenas mortes na vida

Vai onde tiveres de ir. Segue o chamamento que levas os dias a ignorar. Vai. Nada temas porque a voz que ouves é a tua a lembrar-te do que te prometeste. São os ecos intemporais dos teus passos a chamar por ti.
Larga tudo o que tiver de ser largado. O caminho faz-se melhor sem malas. Sem o passado que pesa. O homem que foste dissolveu-se no homem que és. Agora. Nesta decisão de agir ou não agir. De dar ou não dar. De dizer ou calar. De partir ou ficar. De tentar…


Vai sozinho. Não carregues ninguém contigo. Todos temos sítios para onde ir. Coisas para largar. A direcção é a mesma mas os percursos são diferentes. E não duvides que nos encontraremos. Por isso, não lamentes, festeja. No final lá estaremos de taças erguidas a brindar ao Plano. Que é sempre infalível.

Já olhaste para as crianças no início de cada ano lectivo? A ansiedade com que folheiam os novos livros. Pegam neles antevendo os desafios que encerram, com os olhos a brilhar de entusiasmo. Tão desejosos por começar. Conhecer a nova turma. Alguns, a nova escola. Os professores. Não voltam a pensar no ano que passou. A lição foi aprendida e os livros que estudaram nada mais têm a ensinar. Querem mais.
Assim é toda a vida. E que assim seja.

É tempo de largar se há muito tempo não choras a rir. Se a última surpresa que tiveste foi a mudança lugar da padaria no teu supermercado. Ou a planta que colocaram na entrada do teu emprego.
É tempo de seguir se há muito tempo não conheces alguém cor-de-rosa. Ou azul claro. Alguém que tenhas levado para casa no coração, depois de teres trocado algumas, simples, palavras. Mas que são as últimas que te lembras antes de adormecer com um leve sorriso.
É tempo de mudar se não sentes vontade de ir respirar o mar ou não tens ideias parvas. Se ficas com a telha e a resolves arrastando os móveis de casa, a tarde toda. Ou a pensar em revestir com papel de parede aquele canto de quem vai da cozinha para a sala. É definitivamente tempo de largar se já não dás beijos de olhos fechados… Ou pensas se fechaste a garagem enquanto fazes amor.

Vai, se perdes mais tempo a olhar para o relógio que a celebrar todas horas que passam… Larga e vai procurar-te. Vai desenhar-te. Pinta a imagem mais bonita que tens de ti. Fá-lo por ti. Por nós.
Liberta-te do peso dos mortos. Que partam, para que tu partas também, perpetuamente rumo ao teu Lugar.
IdoMind
about reborning
A JARDINEIRA RECOMENDA:
Numa onda de grande sincronicidade, ficam aqui os links para três posts que li esta manhã, de outros que, como eu, andam em diálogo com a morte...boa leitura.

dezembro 03, 2009

Este é para ti!


Como se não bastasse o frio, ainda há esta amargura que se sente quando passamos uns pelos outros. Uma espécie de azedume que se transmite pelo ar e contamina os nossos pensamentos mais bonitos de dúvida e insegurança.
Estamos meio agrestes. Deixámos o anonimato anular a nossa humanidade. Estrangular a vontade de rir. Bem alto, sem vergonhas parvas de marcar o espaço com o som das gargalhas. Abdicámos do direito a ser pessoa pelo conforto de ser um número. Renunciámos ao amor em troca de uma lógica que nos põe a salvo de algumas lágrimas. De alguns erros, como entregar o coração a quem não o quer receber, de dizer desculpa a algúem que ainda não sabe o poder de um perdão, de escolher uma vida extraordinária…
Pouco normal, dirão alguns. Porque aderimos também a um acordo tácito sobre o que é aceitável. Quanto mais aderentes, mais aceitável. Mais normal…

Também gosto de normalidade. Mas quando me traz satisfação. Quando a compreendo e aceito porque há coisas que são como são. Que nos dá a oportunidade de sermos o que quisermos ser.
Não gosto da normalidade que me escraviza a normas que não entendo. Que o meu coração não reconhece. Que não encontram eco em mim. Sim, faço todos os dias a escolha anormal de ser absolutamente honesta comigo. De qualquer modo, já não consigo enganar ninguém, vai sendo cada vez mais difícil pentear as antenas atrás das orelhas.

Vi tanta zanga logo pela manhã. Olhos reluzentes de mágoa, protegidos com uma capa de orgulho. Vi bocas fechadas a dizer “dói tanto!”.
Enquanto olhava, pensava que se fossem capazes de ser mais doces uns com outros, nenhum de nós estaria ali. Estaríamos talvez em casa a tomar o pequeno-almoço ao som do nosso albúm preferido. Talvez a preguiçar mais uns minutos nos lençóis de flanela e a pensar como a vida é boa. Talvez na brincadeira com outros bloggers.

Mas não estaríamos ali, azedos e amargos à procura de alguém que confirmasse que estávamos certos. Que a razão estava, inteira e indubitavelmente, do nosso lado. De um lado e do outro, dois seres humanos muito feridos, com memória apenas do que tinha sido mau. Nenhum se lembrava já dos piqueniques junto ao rio quando vinham da escola, do primeiro beijo, de todas as vezes que fizeram amor e sentiram que o seu lugar era ali, um com o outro.

Saí sem saber bem para quê. Quando dei por mim estava a comprar um chupa-chupa. Não correu bem, só havia um enorme, vermelho, de um boneco chamado Noddy. Paciência. Foi mesmo esse que ofereci à cliente, que olhou para mim. Olhou para chupa, voltou a olhar a olhar para mim e solta um sorriso que me fez ganhar o dia.

Disse-lhe: “ Lá fora a vida continua, com chupa-chupas, bombons e muitas coisas boas para saborearmos. É só escolhermos do que queremos alimentar-nos”.

Percebi que ela percebeu que o que nos levava ali era despropositado. Que estava a dar importância e adensar um sentimento que não era inocente, como aquele chupa-chupa escandalosamente infantil. Do outro lado do mundo, enquanto ela estava numa luta em que ninguém vence, havia alguém que dedicava uma vida a fazer doces. Para crianças. E para adultos no intervalo do crescimento. Para jardineiras destravadas de sensatez...
“Isto pode ser mais fácil, não é? “ perguntou-me ela.
Senti-a a voltar lá atrás, à pureza dos momentos que não se repetem e dos sentimentos limpos de expectativas frustradas.

Fiquei imensamente feliz por ver o peso desvanecer-se do rosto dela e dar lugar à ansiedade de sair dali para estar sozinha com o chupa, que segurava com carinho nas mãos.

Decidi, por uma semana inteira, oferecer um chupa a alguém. Sem motivo algum. E se me perguntarem porquê, responderei, à míuda:
“ Porque o mundo precisa da tua doçura.”

IdoMind
about lollipoping the world
P.S eu já recebi o meu doce

novembro 30, 2009

Obrigada Sílvia...

Hoje li uma frase maravilhosa. Foi deixada por Sílvia Freedom em comentário ao meu post anterior. Então diz assim: “ Aonde eu não chego…lá está você…”.
Tocou-me tanto… Diante do meu meu coração de jardineira desenhou-se logo a interminável cadeia de mãos que se iam largando e segurando ao longo da escadaria que é viver.
Inspirou-me também a escrever. Aqui fica ao jeito da IdoMind um desabafo, e um pedido, para nunca deixarmos de chegar lá…

A vida despiu-me. Foi assim nua, e a tremer, que lhe perguntei, num grito abafado, o que queria de mim. Aprendi a andar de novo. Por outros caminhos. Com novas metas. Aprendi a ver de novo.
Conheci um outro Deus. Que estranhei de início, tão habituada que estava à culpa de não ser perfeita. De não fazer tudo bem a todas as horas. Com todas as pessoas. Este Deus parece que tem os braços sempre estendidos, mesmo nos dias que os meus estão escondidos do mundo. Sobretudo nesses dias. Já O senti entrar na escuridão para onde corro quando fico fraca e o peso fica pesado. Lá vem Ele com mais uma coincidência, com um acaso ou uma pessoa qualquer devolver-me à minha estrada.

Eu que acordei para mim e me vi sagrada tocando este chão bendito, feito para me descobrir, assim, divina na terra. Eu que hoje sei que nada importa senão o Amor que temos na voz, nas mãos e em nós. Eu que chorei e choro, mas que não paro de me transformar. Mariposa em permanente ressureição, largando continuadamente a pele do que fui antes. E crescendo.
Eu consciente do que sou, às vezes não estou lá. Aonde tu não chegas.
Ainda tenho estas arestas de carvão a escurecer o diamante. Todo o brilho. Toda a Beleza. Ainda sou humana e, tantas e tantas vezes, menina e assustada. Como tu, também temo não ser amada. De não quereres que eu chegue lá. De ouvir um “não” proferido com a secura que a dor deixa no peito. Nem sempre os meus degraus são de cimento.

A subida já me fez descer. E descerei de novo, se é lá que tu estás. Se estiveres mais acima galgarei os degraus de dois em dois para chegar a ti. E se as tuas escadas se ergueram ao lado das minhas darei um pulo, de esperança, para voar até ti e perguntar-te: "Queres vir comigo?"



Vamos por aí ver o tal Deus a enlouquecer-nos porque é dos insanos o Reino do Céu. Vamos ser insentatos e viver a Nossa Verdade. Deixar os véus pelo caminho. Destapar o coração para nos vermos. Anda comigo dizer quem és. Descobrir-te filho da vida que geras. Anda comigo distribuir alegria. Subir degraus aos pares. Pular escadas. Chegar lá, onde outros aguardam nossa chegada.
IdoMind
about reaching out

novembro 26, 2009

Reciclagem a quanto obrigas

O meu coração está mais quentinho hoje. Dispus-me a ouvi-lo. A ouvir-me. E fui capaz de ser gazela sobrevoando com leveza e graça o obstáculo que me separava daquela paz que tanto gosto.
Era só uma questão de orgulho. De muito, muito medo de voltar ao meu ermo vestida de patinho feio.
Foi preciso consciência. Foi preciso humildade. Foi preciso chamar a coragem que tinha guardada para usar um dia. Aquele dia, que parece sempre tão longe de hoje. Teve de ser, esgotei a dose da bravura que estava reservada e perguntei-me:
“ Porque estás a delegar em mãos alheias o teu próprio bem-estar?”

A situação é simples. Alguém que eu gostava muito, sem qualquer motivo ou explicação deixou de me falar. Ainda enviei uma mensagem a pedir desculpa se tinha feito algo que tivesse magoado e que nunca tive tal intenção.
Do outro lado – silêncio. Deste lado – “ Que raio…?”

Também deixei de falar. Fui mais longe e fugi. Deixei de ir onde gostava de ir apenas para não me cruzar com a pessoa. No domingo à tarde fiquei sem andar. As pernas simplesmente pararam. Não há qualquer metáfora escondida. Pararam mesmo. Não as conseguia mexer. Percebi de imediato e disse baixinho “ Está bem, amanhã eu vou lá.”.Segunda-feira levantei-me completamente recuperada…

Encontrei a pessoa e a coisa ficou para o estranho. Dois beijinhos educados na face e falar que é bom, nada. Resignei-me e embarquei no teatro. Até ontem. A verdade é que andava triste, constrangida. A falta de conhecimento traz sempre inquietude. E eu andava inquieta.
Contrariando então a natureza torta com que fui agraciada, depois fortalecida pela família “especial” que escolhi, pus o orgulho a dormir e tentei de novo.


Num rasgo (raro) de lucidez entendi que eu estava a ser igual à pessoa: irredutível na minha posição. Fosse ela devida a dor, a mágoa, a birra. O que fosse, eu estava de pés fincados na minha razão.
Noutro rasgo (ainda mais raro) de intrepidez, enviei nova mensagem “ Não me atrevo a ligar-te porque não sei o que se passa contigo mas se precisares de alguma coisa em que possa ajudar, eu estou aqui. Sabes que isto é sincero. Até amanhã”.


Foi com todo o amor que tentei desta forma esticar a minha mão e o meu coração até à outra margem. Que continuou e continua em silêncio.
Mas agora já não faz mal. Senti-me mais mulher. Um ser humano a procurar realmente ser melhor.
Senti todo o carinho que sinto por essa pessoa, a abraçar-me… A recompensar-me.
Sei que foi um acto importante no sentido da cura das feridas que julguei cicatrizadas.
Mas que não estão.

Estou muito contente comigo.
IdoMind
About myself

novembro 24, 2009

Com os teus sapatos


Andei a calçar sapatos. Estava exausta dos que trago. Descalcei-me por um bocado e quase ouvi os meus pés a respirar. E a agradecer. Eu também respirei. E agradeci com um suspiro, pela força que me fez dar tantos passos até ali. Reconheci que não tem mal sentarmo-nos por um instante. Ou por muitos. Por todos os que forem precisos para calar tudo o que grita há tanto tempo. De cansaço. De desalento. Por todos os que forem precisos para reinventar uma vida. Pelo instante necessário para esperar pela fé que ficou um pouco lá atrás.

Sentada na minha berma vi os outros pés a passar. Todos calçados.Imaginei-me a andar neles e veio uma dor ao peito que só o perdão amainou. E a promessa de calçar muitos sapatos. Todos os que puder para que entenda que são de gigante alguns passos pequenos. Que é difícil arrastarmos nos pés o que não nos serve.
Os sapatos grandes, maiores que nós, que nos vão aspirando até sermos só lembrança da pessoa que nunca conseguiu dizer não. Daquele que tudo podia. Do incansável que não demarcou as suas fronteiras. O sem limites que se diluiu nos sonhos alheios. À noite, enquanto arruma os seus enormes sapatos, vai-se adormecendo ao sabor de uma qualquer redenção, oca e cara.

Também ainda não tinha parado para ver como andam apertados alguns pés. Conformados a um molde que não é o seu. Pés bonitos que por quererem caber em espaços menores, se vão deformando. Lenta e dolorosamente. São pés tímidos que o medo da rejeição mantêm atados.
E aqueles saltos altos… lindos, elegantes. Hinos a um equilibrismo conquistado. O retrato composto em exibição pública. A imagem impecável que não combina com choro. Com dias maus. Com luas fortes.Os sapatos de saltos altos que te fazem sentir mais bonita. Mais alguém. Sem eles é como se andasses nua e entendendo-te porque também tenho os meus apoios.

Hoje, até calcei uns ténis.Percebi melhor que não é fácil ser genuíno num mundo que nos quer previsíveis. Responsáveis. Amarráveis…Capazes de abdicar do conforto de sermos nós, a viver a nossa vida, para sermos os outros a viver a vida que querem para nós. Gostei de sentir esta audácia. De dizer com os teus ténis que não sou igual. Assumindo as consequências da diferença.

Se pudéssemos sempre calçar os sapatos uns dos outros. Apenas para sentir um coração que não o nosso. Para perceber que também acelera. Que arrefece. Que pulsa ao ritmo do que dá e do que recebe.
Se pudéssemos todos fazer uma paragem e trocar de calçado. Usar sapatos mágicos que nos conduzissem pela vida a dançar. Que dessem para voar. Sapatinhos de cristal a condizer com nossa alma transparente.

Se pudéssemos andar descalços sem magoar os pés…
IdoMind
about what you wear

novembro 19, 2009

Vida, vida

É agora que preciso do abraço. Daquele que é dado sem ser pedido. Que nos aninha e acalma a dor de uma solidão que não se escolhe. O abraço que traz a Primavera aos espaços vazios que foram crescendo cá dentro. Já vai longo este Inverno. O sol esqueceu-me de mim, aqui ao frio.

É agora que preciso de ouvir as palavras certas. Mãos com mãos e olhos nos olhos, ser capaz de falar. Sobre o medo e o que nos prende as pernas. Sobre expectativas. Sobre esta humanidade que nos força a esconder o corpo atrás de muita roupa. E as lágrimas atrás de caras paralisadas por sorrisos de plástico. Vamos calar todos os ruídos que nos cercam e ficar. Só ficar. Sente-me e reconhece-me como aquela que entende. E que ouve o indizível.

Conheço bem as lutas que nos roubam o sono. As vitórias da razão a que as emoções nunca se rendem. Os sentimentos pensados e os pensamentos que se sentem, envolvidos e desposados no conflito permanente pela busca do amor. É isso que tudo se resume, sabes? Todas as batalhas são por ele. Mas é na paz que ele se revela. No silêncio das disputas. Não antes.

Eu também fazia as escolhas seguras. As que me mantinham longe da vida e dos seus desgastes. Das pessoas que falavam de si e que andavam por aí com o coração à mostra. Do rebuliço que é andar no meio dos outros. Eu também não dizia desculpa…

Um dia percebi que me deitava sozinha. Como todos os dias. Eu, comigo. Foi o dia em que percebi que nada, nem ninguém importa além de mim. Mágico algum tem a fórmula para a minha felicidade. Para o que me faz sentir bem. Para as gargalhadas que já dei e para todas aquelas que ainda tenho para dar.

É tudo sobre simplicidade.
Ainda que custe, e como custa, pergunto se a imagem no espelho é mesmo a minha. Ainda que pese, e às vezes pesa, carrego a claridade que ilumina a falta de entendimento. A minha lanterna entra em todas as casas onde os enganos ergueram paredes. Ainda que demore, eu compreendo. Os tempos das coisas. As nuvens que pairam sobre os espíritos. O destino.
E os abraços que não têm de acontecer…

IdoMind
About words to say

novembro 18, 2009

Jardineira Is in The House!

Fechei os olhos por um instante para descansar deste cinzento que me magoa a vista.E enegrece o coração.


Deixei a minha caneta pousada, assim como as minhas mãos, deste lado da vida onde tudo cabe numa gaveta qualquer. Até as pessoas. Vi-me por aí desarrumada, sem lugar onde me encaixar. Nenhuma das cores era a minha. Entre o preto e o branco há um arco-íris infinito dentro de cada um de nós.
Eu vejo todos os arco-íris que se erguem nas almas depois dos dilúvios. Naquelas que naufragaram e cuja pomba ainda não voltou. Nas que flutuam por entre as marés sem tirar os olhos do céu. Nas outras que se bastam com um guarda-chuva porque nada é para sempre. Nem a pior das tempestades.

Sou o pai impaciente a tentar o seu melhor. Sou a mãe que chora de cansaço. Sou a pessoa que passa, sem sonhos porque carrega as marcas de cada acordar. Sou o homem assustado que finge uma coragem que não tem. Sou a mulher dos dias de hoje a quem as decepções foram amputando os sentimentos. Sou o vizinho que precisa de ser rude para saber que alguém o ouve. Sou aquele que não sabe quem é.

Eu sou todos os que ainda não me viram neles. E às vezes procuro um lugar apenas para estar. Com quem estar. Mostrar que também posso caber na gaveta ou num desses armários com nomes.
Mas eu sou a etiqueta em branco que esvoaça por entre os corredores dos certos e dos errados.
Gosto de mim assim, por preencher. Letra alguma me pode gravar além da que é escrita com amor. Nesta pele, eu própria vou escrevendo a minha identidade. A que eu reconheço.
Quis tanto ser igual que revelei ainda mais a diferença. Eu sou a diferença. Tu também. E como é lindo o que nos distingue.

Sentei-me muitas vezes aqui para falar de fantasias, para inventar loucuras e partilhar as minhas visões de Deus. De todas me levantei triste porque a inspiração desaparecera juntamente com o meu despropositado bom humor.

Hoje, ao cabo de cerca de um mês, consegui de novo cuidar do Jardim, deixado ao abandono como um baldio qualquer.
Estou de regresso e com algumas histórias para contar.
Se eu podia dizer tudo isto com “ Estive a pensar na vida”?
Podia. Mas não era a mesma coisa…
: )
IdoMind
About taking a break

outubro 21, 2009

Ouve


Falo para ti que tiras os pés da cama sem saber se voltarás a deitá-los nesses lençóis.
Não tens certezas, excepto nos fins que esperam a cada partida e ainda assim partes.
Tu que procuras caminhar erguido, mesmo com o peso de tantas mãos nos teus ombros.

Carregas as tuas e outras culpas, que te empurram no sentido que na verdade não é o teu.

E sentes-te feio por te descobrires humano e sonhador. Fechas os olhos só por mais um tempo. Que se transforma em muitos tempos. Anos que lamentas teres sido todos menos tu.

Falo para ti, que te deitas sem saber se acordarás do sono que te é concedido para te visitares. A ti, que te apetece ficar mas que voltas, porque de cima viste a perfeição do teu lugar cá em baixo. A grandeza das escolhas que deram à luz outras escolhas. Que foram assim desenhando, a sangue e a amor, o Plano.

Demoras-te porque não vês nas coincidências os lábios do céu a dizer-te que confies em ti. A beijar-te sempre que é de um beijo que precisas para continuar. O ar que levas aos pulmões traz misturado bocados de nuvens.
Que a cada respiração vejas a oportunidade…
Que no outro Te vejas, a revelar por onde ir.

Aceita o mistério sem que te paralisares por ele. Fala. Pede. Como pode a vida dar-te o esperas dela se te ocultas por detrás dessa mudez. Só para os mudos de espírito, a vida é injusta. A primeira palavra terá de ser tua e pode ser “ obrigado” porque já foste ouvido.

Falo para ti que, como eu, desesperas diante dos muros altos que guardam o jardim. Dos atrasos infindáveis da felicidade prometida. Das pessoas que nunca chegam e daquelas que nunca partem. Das vozes grossas que te enchem de medo de gritar quem és. Dos deveres que não pediste mas que não recusas. Da vida que passa…

Falo para ti, guardião do teu caminho. Senhor de todas as tuas horas. Que sejam de força e de coragem. Que sejam de mudança. Mestre das lições que ainda aprendes, lembra-te do Amor que tudo pode...


IdoMind

about keep on going

outubro 14, 2009

Deve ser longe

É aqui que mora o Amor?
Na porta ao lado da minha oiço o barulho da felicidade. As cócegas lá dentro do peito que os lábios tornam risos. As palavras importantes ditas com os olhos a brilhar. E as que não precisam de ser pronunciadas porque é no silêncio que algumas almas que se encontram. E falam assim, caladas. Oiço ecos do diálogo imortal que começou com um Verbo.

Fico ali, comigo, de porta aberta a mirar o horizonte fugidio, sempre mais rápido que eu. E espero a visita de quem perdeu a minha morada.
Tenho tudo preparado. Há na minha casa flores que são filhas da Beleza. Flutua o perfume a quimeras que embala a fadiga e nos faz crianças descalças a sentir o palpitar deste e doutros mundos.
Tenho ao canto, um sofá branco que nos abraça. Ía jurar que a cada suspiro sigiloso largado nas noites mais longas, nos afaga. Recebe o nosso corpo esmagado pelas horas que não passam e ensina-nos a sarar as nossas dores com suavidade. Aceitando que o sofrimento são só os intervalos da compreensão.
E na minha varanda … é onde as ondas vêm descansar. Abençoado tapete de água salgada que me lava nas idas e nas vindas deste mar em que me perco continuadamente. Vim sem bússolas para me descobrir guia da minha viagem. Aprendi que cada casa é um farol. A sua Luz não pode apagar-se.

Na minha casa, sem paredes, há quartos para todos os astros. Recebo-os, agradecida pelas lições que me trazem das suas danças ao redor do sol. Brincamos às cartas e às escondidas. Espiões do tempo que é sempre o mesmo. Ensinaram-me a parar todos os relógios no segundo exacto que agarro. Que vivo. Que SOU.

Esta é a minha casa. Com um coração pintado na porta para que o Amor saiba onde moro.E um dia destes decida entrar...
IdoMind
about The Door

outubro 08, 2009

Já escorregaste?


Pode acontecer tropeçar. Todos tropeçam. Uns caem, outros não. Alguns magoam-se e outros… também. Não há ilesos nos tropeços. Há feridas que curam rápido, as que vão curando e aquelas que nunca curam. As que deixam marcas gravadas na pele e na alma. Existem quedas que nunca acabam. Que nos levam onde estamos escondidos dentro de nós.

De repente tropeçamos num sonho. E os sonhos têm o poder de afugentar a sensatez. Onde reina o sonho a razão é escrava. A mente cala-se e tudo se torna possível. Até os impossíveis a que nos segurávamos para não tropeçar…

Ficamos tão fortes quando sonhamos. Ou irresponsáveis. As definições tornaram-se indefinidas neste tempo, meio por definir, em que responsabilidade significa infelicidade. Deviam queimar-se os dicionários e começar-se tudo de novo. Desta vez menos arrumados para que o Amor coubesse entre cada palavra.

Mas às vezes os sonhos caminham à frente dos pesadelos, anunciando-os. Às vezes os sonhos acordam-nos. Dentro de mim, carrego o sonho de encontrar qualquer coisa que não sei bem o que é. Acredito que vou sentir quando chegar. Na espera vou sonhando. E tropeçando. Tanto.

Espreito, nem sempre experimento. Decido se abro os braços ou volto as costas. Encontro a cada escolha o fantasma da dúvida sobre a perfeição. Do melhor para mim e para os outros. Pergunto o que será este melhor. Onde acaba o egoísmo e começa a consciência. Se é a cobardia ou a bravura que está em comando.

É que eu ainda não sei quem sou. Tenho-me descoberto nos tropeços. Os meus sempres deram lugar a pequenos hojes. Porque esta é via para o eterno. E os meus nuncas são agora honestos talvez. Porque nada vejo além deste momento em que sou chamada a ser.
Se olhássemos uns para os outros a tropeçar… o dedo que aponta juntava-se ao resto da mão para amparar algumas quedas. Para abraçar algumas dores. Para dar algum bocado de nós…
Todos temos o direito a sonhar. A trazer os sonhos e dar-lhes uma cara, um cheiro, um sabor, um sentimento que nos entra no peito para construir asas. Todos temos o direito a descobrir que o melhor de ontem esgotou a sua missão.

Trazemos nos pés, pó das estrelas. O rasto que deixamos e o que vamos deixar será sempre luminoso. Pouco importa que o façamos aos tropeços ou num suave deslizar.
A todos o direito de cintilar.
IdoMind
about starlighted footsteps

outubro 06, 2009


Olha para as minhas mãos, aqui entrelaçadas uma na outra, enquanto te falo do que calo aos ouvidos do mundo. As mesmas mãos que guardo e escondo tão receosa dos filhos que possam gerar. Mas os gestos que ficam por fazer também são pais. E eu sou a mãe de todos eles. Dos que quis. Dos que não quis. Dos que quiseram por mim e dos quais eu quis nada.

A criação não pára, nem mesmo quando eu permaneço imobilizada pelo pânico da minha pequenez. Do lado de lá da minha gruta, o sol e a lua continuam a andar de baloiço e tudo gira. Tudo. As minhas crias voltam a casa e as portas não se podem fechar. Que estas mãos as recebam no afago amoroso de entendimento acerca dos erros que fazem crescer. Que estas mãos saibam dizer adeus sem dor.

Estendo-as para ti para que me mostres como usá-las. Estendo-as para ti para que as segures e eu saiba que do lado de lá da minha gruta, onde a luz e a escuridão brincam, tu esperas por mim. Com as tuas mãos estendidas, que são do tamanho das minhas e capazes das mesmas obras.
Entrego-tas para lhes ensines a trabalhar ao serviço da Verdade. Mostrando-a, dignificando-a. Vivendo-A. Intensamente. Com plenitude. Em humildade. Que as minhas mãos nunca neguem tocar o chão. Nem uma face.

As minhas mãos que se zangam e que enfraquecem e que também gritam porque é árdua a escalada na tua direcção. E pele vai endurecendo com o caminho.
Nestes momentos entrego-tas para que as segures de novo e lhes dês de volta o Amor que se foi dispersando nas perdas, nas desilusões, no carinho que ficou por dar, na mentira que nos fez acreditar, nos rudes despertares, nas outras mãos que passaram por nós sem nos sorrir.

Olha para as minhas mãos aqui sossegadas. Estou com medo. Outra vez. Sei que se permanecerem assim quietas, muitas mãos, muitos pés e muitas corações irão unir-se e dançar à minha frente, ao meu redor e dentro de mim até que eu me una com a festa abençoada da vida.
Mas agora estou aqui. Sem vontade de festejar, com as minhas mãos agarradas uma à outra em oração. Ajuda-me a separá-las, erguê-las para o céu e tocar-te.Dá-lhes força para te trazerem até aqui, em tudo o que faço.
Que cada acto seja uma revelação de ti.
Que as minhas mãos alquimistas transformem o pedido em agradecimento.
E o medo em Fé.
IdoMind
about ups and downs...and ups again

outubro 03, 2009

Blogonovela - 2.º Episódio


Capítulo II
A Origem
Nada haveria de extraordinário neste acontecimento se o velho carvalho não tivesse ficado despido de metade da sua roupagem com uma precisão milimétrica. Um traço invisível dividi-o agora ao meio, separando uma parte totalmente coberta por ramos e folhas, da outra parte atingida pelo raio, que ficara sem o menor vestígio de vida.


Além do insólito penteado da árvore, de referir que desde a morte de José, por coincidência ou não, nunca mais chovera na pequena vila. À notícia de chuvas nas regiões vizinha, os habitantes enchiam-se de esperança, mas as nuvens, se por capricho ou ordens superiores, nunca entenderam, mudavam o seu trajecto e passavam mesmo ao lado sem sequer deixar cair, ainda que tímidas, uma ou outra gota.
Depois do incidente, Benjamim passou a visitar com uma assiduidade religiosa o carvalho e lá ficava sentado durante horas. Nunca falara sobre o sucedido. Cresceu quieta e silenciosamente, tornando-se uma pessoa muito reservada. Mesmo com o seu emprego no Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica, a esposa e o filho, Benjamim peregrinava pelo menos uma vez por semana até ao local onde o amigo desaparecera de forma tão reluzente.


Este comportamento transpirava a doença para o Joaquim Belverde, pelo que foi com algum alívio que que vendeu " O Reino" à autarquia e com ele, o rei - o malfadado carvalho. Todavia, quando Benjamim advertiu o pai que nunca mais o veria, nem ao neto se o ”Sustus” desaparecesse do local, Joaquim tratou de envidar todos os esforços no sentido de garantir a sua sobrevivência. Mesmo depois do "Reino" se tornar na lixeira do município.
E assim começou o litígio.

O Sr. Presidente reclamava que não fazia sentido manter a solitária e ancestral árvore no meio de lixo. Joaquim Belverde argumentava que esta fazia parte da história local e deveria ser mantida incólume, atendendo à sua respeitável idade e a todas as vicissitudes porque já passara e estoicamente sobrevivera.
Será que se tinham esquecido de Aurélio Campos?
Ainda sob o choque da comunicação da sua pacata esposa informando-o que ia a Espanha com a vizinha da frente frequentar a Universidade de Belas Artes, o dono da drogaria local, já em avançado estado de embriaguez e depois de ter arrancado todos os caixotes de lixo e caixas de correio entre a Rua do Perdigueiro e a Avenida S. Bernardo, estatelou-se contra o "Sustus" com a Lindinha, a lambreta de estimação na qual dava sempre uma volta quando precisava de pensar na vida.
As palavras da mulher não lhe saíam da cabeça: “Aurélio, sabes que sempre tive habilidade para o desenho e esta cidade abafa a minha criatividade. Quero crescer”.
Aquela maneira de falar atacou-o de forma totalmente inesperada, já que a esposa, com perto de cinquenta anos e a instrução escolar limitada à antiga 3.ª classe, nunca dera indícios de conhecer tão copioso vocabulário. Soube mais tarde que Emília frequentara durante três anos um curso especial promovido Governo nas zonas do país com maior índice de alfabetismo. Esta iniciativa educativa visava incentivar os adultos daquelas regiões a completar o ensino escolar obrigatório, ou seja o 9.º ano de escolaridade, para depois os reencaminhar para cursos especializados e, assim, a par do crescimento pessoal dos habitantes destas zonas, promover-se o crescimento das próprias zonas.

Emília foi um caso exemplar do sucesso da iniciativa. De tal modo que face à sua particular facilidade para a aprendizagem e um talento indesmentível para a pintura, a pedido dos dois responsáveis pelo projecto na freguesia, foi implantado um ano extra para que Emília obtivesse a equivalência ao 12.º ano e a possibilidade de ingresso na faculdade.

Aurélio perdera Emília e com ela o chão firme em que sempre caminhara. Pior, Aurélio soube então que nunca tivera Emília mas apenas a sombra de alguém que ele nunca iria saber quem era. Onde estava ele quando a mulher decidiu “crescer”? Mingando, definhando confortavelmente sentado no sofá, ora ocupado com os dramas de Priscilla e Marco António, o casal-maravilha da novela das 7, ora mergulhado na lista de encomendas que tinha de fazer todas as quartas-feiras.

O despertar fora violento demais para a mente rudimentar de Aurélio que habituada a processar informação simples, entrou em conflito perante o imparável, e por vezes cruel, movimento giratório da Terra.

O volante da Lindinha ficou cravado no carvalho como um selo lacrado numa carta e Aurélio, caído no chão de barriga para cima, não teve tempo de evitar um braço do Sustus que se deixou desprender do tronco em queda livre e só parou na testa do pequeno comerciante. Do acidente resultaram para Aurélio Campos: dois meses de internamento; uma pequena bossa na testa; um tique incontrolável no olho esquerdo em momentos de tensão e perdas inexplicáveis e temporárias de memória, que os seus conterrâneos habilmente souberam manipular.

O incidente servira para reforçar a crença popular no que ficou apelidada “ A Maldição do Carvalho”. Os habitantes da cidade acreditavam que “Sustos” – o infame - tinha uma espécie de vontade própria e que exercia um magnetismo insondável sobre quem estivesse infeliz. Uma antena, em forma de árvore, para captar miséria e desapontamento.

Pois que o caso de Aurélio Campos não fora isolado. Assim nasceu e se frutificou o mito.
to be continued...
IdoMind

outubro 01, 2009

Desculpa

Desculpa pelos atalhos por onde me perdi. E desculpa ter ficado por lá tanto tempo. Precisava de castigar-me. É assim que pago as falhas a que não me permito, até ao fim. Até se tornar difícil olhar para mim. E descobrir que basta olhar para ti…

Desculpa também por isso. Por todas as vezes que finjo que não te vejo. Pelas outras em que fecho os olhos e ando às escuras porque não quero que me vejas. É por vergonha e é por medo das escolhas que faço e das que deixo por fazer.


Perdoa-me, por favor, por te ver à minha imagem. Por ainda pensar que me julgas. Desculpa pelos espelhos que não parto para que te vejas resplandecente em mim.

Desculpa…

Por me separar de ti. Por arrancar os fios inquebráveis que nos unem e carregar sozinha o meu próprio peso. Tão vergada que não consigo ver o céu. Transporto na alma a culpa da imperfeição. Dos erros vestidos de pecado por este esquecimento necessário e consentido. Desculpa por me esquecer que não posso errar. Nem pecar. Desculpa por nem sempre me lembrar que em tudo há um bocado de ti a chamar por mim.


Ainda ontem não sabia que estavas aqui, ao alcance de uma prece. De um desabafo sincero. De um pedido secreto feito de joelhos no chão de um quarto. De um agradecimento iluminado. Ainda ontem eu era o centro do mundo.

Desculpa por acordar tão tarde. O sol já vai tão alto e na minha casa reina a escuridão. Desculpa por nos obrigar à espera do despertar glorioso que me resgata da mentira. Desculpa por ainda adormecer tantas vezes…

É este querer nascer antes do tempo sem perceber que já sou. Que sempre fui, que nunca vou deixar de ser. Somos a Estrela e o Firmamento abraçados um ao outro. Existimos desde o tempo em que não havia tempo. Cruzamos juntos o infinito a brincar às vidas numa jornada sagrada. Desculpa por querer parar. Desculpa os intervalos em que me sento a respirar…

Esta viagem arredondada do espírito pode cansar. E dá vertigens. Preciso só de um bocado para me libertar dos fardos que fui recolhendo. Tirar os sapatos e sentir-Te na minha estrada feita de nuvens. Preciso de descansar um pouco o corpo que acusa fadiga. Repousar a cabeça para deixar espaço que a tua sabedoria de novo me fale do Amor que é tudo o que sou.
Entretanto, desculpa…
IdoMind
about accepting

setembro 28, 2009

A Extraordinária História de um Lugar Deveras Extraordinário - blogonovela por IdoMind

Capítulo I
Sustus

Foi apenas com os seus tenros 10 anos de idade e no despontar da sua primeira crise existencial, que Benjamim descobriu o conforto de ser deixado sozinho. Era filho único mas tinha uma mãe siamesa. Onde quer que fosse, o que quer que fizesse, lá estava a sua sombra em forma de mulher.

Um dia Benjamim começou a correr. Há medida que se afastava de casa, transformava-se numa corrente de ar empurrada pelo vento. Era o Benjamim Leveza e sentia-se tão bem! Só uma hora depois de ter levantado voo e a uma distância considerável de casa (na medida de quem tem 10 anos de idade, claro), começou a sentir o peso das pernas a pedir terra sólida, de preferência um pedaço de relvado verde e fresco onde pudessem recuperar até a próxima partida.


Ofegante, deu por si num cemitério. Não daqueles em que há mortos, mas um cemitério de bocados de vidas. O último lar dos despojos, que a dado momento e com um determinado objectivo, passaram pela vida de alguém, para terminar ali, num amontoado confuso de plásticos, pedaços dilacerados de roupa e papéis, onde as palavras outrora dignas de registo esvoaçavam agora sujas e perdidas - a lixeira. Melhor dizendo, o espaço onde havia funcionado a lixeira, agora transferida, sob um nome muito mais pomposo, longe de fazer lembrar lixeira, para os confins de uma terra fronteiriça, mais pequena e quase desabitada.


Era ali que Benjamim se refugiava desde então. Fez da ex-lixeira o seu recatado jardim, ainda que o único vestígio de vida vegetal fosse o velho carvalho que, resistindo com inigualável valentia às incessantes e esforçadas tentativas da Junta de Freguesia de o decepar, permanecia, teimosamente, de raízes bem fincadas no solo castanho que o lixo tornara estéril.

A batalha judicial havia sido longa, desgastante e apaixonada. A questão sobre o abate ou não do voluntarioso carvalho acabou por ser ganha por Joaquim Belverde, o proprietário do terreno, que conseguiu convencer o Sr. Presidente da Junta a reconsiderar a sua decisão. Recorreu para o efeito, não uma qualquer artimanha jurídica, mas à sobejamente conhecida superstição do autarca.

Acontece que uma criança estava refém do carvalho.
Numa noite abafada de Verão, libertando a inquietude que o calor parece causar, sobretudo nos mais pequenos, José e Tomás foram até ao seu sítio favorito – “O Reinado”.

Os cerca de dois hectares de terra dourada outrora camuflada por longos e densos braços de feno, eram desde sempre, ou pelo menos desde que se lembravam de existir, a segunda casa dos dois amigos. O lugar que era só deles, onde engendravam os esquemas que punham em acção no dia seguinte na escola, onde trocavam as experiências das suas curtas, mas já riquíssimas, vidas e partilhavam as parvoíces que acreditavam ser as verdades mais absolutas sobre o funcionamento do universo. Claro que como qualquer esconderijo digno desse nome, foi também no “Reinado” que deram os primeiros bafos nos cigarros corajosamente roubados ao temível talhante da rua onde moravam.

José subiu então à árvore para verificar se o perímetro estava livre. Sem que ninguém previsse, uma forte chuvada fustigou a vila e ao sinal do primeiro relâmpago Tomás pediu-lhe que descesse, o que este recusou respondendo-lhe:
- “ A chuva não me molha e os raios não me podem atingir aqui. Já te esqueceste, esta é a nossa casa Tomás e os ramos do “Sustus” são o nosso telhado. "
Assim haviam baptizado o carvalho depois de terem afugentado um pastor, que ao invés da sombra da árvore, encontrou cerca de uma dezena de esquelos de vaca ao redor do tronco. Escondido num dos oríficios do Sustos estava um gravador, que os amigos accionaram quando no horizonte viram o pastor a aproximar-se. E foi como se um coro de seres bestiais tivesse emergido da terra gritanto " Claro que estamos loucas. Parem de nos comeeeeer!". O pastor voltou a desaparecer, agora mais rápido, do horizonte.

Quando voltou mais tarde, desta vez acompanhado, não havia vestígios das ossadas, nem ecos das vozes.
As últimas notícias que tiveram, davam conta que tinha aberto uma ervanária na cidade.

A chuva engrossava e o céu vestira-se de luto, mas o jovem José, que ainda se via infinito, empoleirado no Sustos assistia do seu camarote ao espéctaculo da natureza, respondendo ao seu amigo:

" - Aqui nada nos atinge. Nem mesmo os gritos de Deus. E riu.”
Neste instante, um trovão ensurdecedor acompanhado de uma luz brilhante que clareou toda a noite com uma intensidade invulgar, fulminou José, que morreu a sorrir e a acreditar.

to be continued...

IdoMind

about story telling

setembro 24, 2009

Entende, se quiseres

A luta pelo mundo começa pela luta por mim.
De que adianta partir sem saber porquê. Que causa vou eu defender, aqui, onde todos somos heróis de uma história. Aqui, onde os certos e os errados têm a duração de um folêgo. Onde o bem e o mal são as mãos do mesmo corpo.

Os vilões extinguiram-se numa ressureição. Hoje somos todos santos a renegar a nossa herança.

Contra quem empunhar a espada, se do outro lado do campo também lá estou eu.Revejo-me no fogo que o coração ateia nos olhos. Na força das palavras que ainda ninguém domou. Na vontade de lutar porque a causa é justa. E deste lado também sou assim, com o mesmo fogo, a mesma força, a mesma vontade. Sou diferente na cor. Acredito noutras coisas. Noutros Deuses. Às vezes não acredito em nada. Tenho outras prioridades. Uma personalidade que me dá as vértebras para caminhar direita. Sou diferente nas escolhas.


Mas somos filhos do mesmo Pai e voltaremos ambos à Casa de onde partimos à nossa Procura.
Por isso, não lutes contra mim e eu não luto contra ti. Que os nossos espíritos guerreiros conquistem em amor e pelo amor que nos trouxe até cá. Só. Que a nossa liberdade liberte.
Os campos de batalha estão onde quisermos vê-los. Os jardins também.
O inimigo podes ser tu com amnésia.Dorido e cansado disparando em todas as direcções.
Eu vejo-te uma árvore de raízes profundas cravadas na Terra que é o teu lar, crescendo quase impercetivelmente rumo às nuvens. Vejo-te a comer do chão mas a beber do céu.

Vejo-te um, dividido por muitos.Que cumpras a tua parte. E eu cumpra a minha, para que mais um regresso seja celebrado.
Porque alguém o consegue dizer melhor, deixo-te com as suas palavras:


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive”

IdoMind
about Us

setembro 21, 2009

A Cama

Haverá limites para o amor que se sabe indomável,incorrentável, que se enraíza a cada voo.
Para esta vontade de experimentar. De sentir o sabor. De agarrar um adeus. De tocar os corpos nús, com peles que não mentem.
Gosto de arrepios. Dos que partem depois de nos deixarem num reboliço. De mãos destemidas que tacteiam a vida. E as mulheres. Que lhes adivinham as curvas com suavidade. As mãos gentis de uma alma à descoberta da outra.

Com chocolate ou sem chocolate, seguindo um rasto de velas, pétalas de rosa ou a correr porque já não apetece mais esperar, encontrar a cama onde os segredos se revelam.
Falar. Sem me preocupar em fazer sentido. Permitir que me vejam porque sou bonita.Voltar a rir por todas as vezes que me encolhi e escondi o sol atrás da vergonha.Das oportunidades perdidas de ter me ter conhecido mais cedo. De dizer o que quero ouvir. E depois deixar-me ir pelas palavras para aquele sítio onde já não se ouve muito bem.

Entender que não há pecado. Trancar os errados do lado de fora da porta e levar para os lençóis apenas a pessoa que quero ser. Respeitar-me.
Onde o humano e o anjo se encontram, perguntar que parte de mim ergue mais alto a sua voz. A sua vontade. Ou que parte minha quero calar por aquele momento em que não vou estar sozinha. A que preço estará o amordaçar do ser? Quanto vale a viagem para fora de mim?


Paga-se para manter o que não se quer perder. Mas as perdas não se seguram é por isso que as perdemos. Não se evitam, por isso acontecem. As perdas são as estradas a reencontrar-se. No meu quarto não se constroem atalhos porque sou livre e porque confio. A cada um, a estrada traz o que lhe pertence.


Dar-me é não ter medo. De mim. Do outro. De ir na direcção que escolho.De escolher outra.
Só os corajosos fazem amor. Os outros… não sabem o que fazem.
IdoMind


About love making

setembro 17, 2009

Hojes

Porque não?
Encher os pulmões e receber a vida. Deixando o que foi para trás com a certeza nos novos começos. Gloriosos, esperando por nós já ali a tão poucos metros do sítio onde parámos.
É tirar a terra que pesa sobre os ombros e respirar à superfície.




Porque não saltar de um avião. Enviar um telegrama de chocolate ao chefe pedindo aumento ou ficar a ver o por do sol depois do trabalho. Deixar de ser mãe por umas horas para ser apenas mulher. Ficar calada um dia inteiro e somente ouvir. Os outros, o silêncio e nós mesmos. Consentir que o vazio nos encha.
Porque não usar palavras doces para dizer o que se quer. Falar com as mágoas para as compreender. Rir depois do diálogo porque eram afinal nadas que o medo tornou um Tudo.



Porque não partir a casca do ovo. Somos todos pequenos a aprender a andar. É bom estar quentinho no conforto de uma casa onde não cabe mais ninguém. Mas porque não apanhar frio para descobrir o amor de uma manta alheia ou de um abraço dado com a alma.
Porque não ficar feliz com as coisas simples?

Acreditar que é impossível a infelicidade. Que todas as lágrimas são o coração a dizer que entendeu e que fará melhor a partir de agora. De hoje. Desde instante sagrado.
Ser diferente sempre que os sorrisos fugirem dos nossas faces. Procurá-los de novo. A dor só faz doer. Que sejam breves os nossos lutos para a cor de novo regresse.


Porque não andar de baloiço no meio das crianças. E se o guarda vier, porque não andarmos os dois de escorrega. Levar uma flor à professora do nosso filho porque lhe está a ensinar coisas importantes. Premiar um funcionário ou colega com o prémio da simpatia. Sei lá, porque não ser uma pena numa grande almofada emplumada.


Viver em alegria. Somos graças únicas.
Porque não comemorar esta existência como um milagre que não se repetirá.
Porque não rodar o mundo e fazer do chão o nosso céu.

Porque não?

IdoMind

about all the why´s



Porque alguém faz circular o AMOR.

Porque alguém nos enlaça como um só.

Porque alguém se importa.

Porque alguém é alma assumida.

Hoje dou mais um passo em direcção a todos e digo com o coração destapado quem sou.


Estou numa Cova, a viver o meu momento. Podem lá ir. É só clicar aqui.

IdoMind


about you António



setembro 15, 2009

Blup Blup

"Num aquário, um peixinho dourado pergunta ao outro:
- Acreditas em Deus?
- Mas é claro que acredito! Quem é que achas que muda a água?


Se calhar nós somos peixes com óculos. Peixes espertos. Com a mania da intelectualidade. Mas apenas peixes.
Às voltas num aquário tão grande que chegamos a pensar que é infinito. Deve ser por isso que batemos tantas vezes com a cabeça. Os limites da nossa liberdade estão lá, mas invisiveis aos nossos olhos.
Também explicaria a nossa fraca memória e a tendência natural para cometer os mesmos erros. Várias vezes.


Nadamos e nadamos. Sem parar. Mesmo com o cansaço a puxar-nos para o fundo. Se por medo ou mero por instinto, apelamos, às vezes, a restos de força para continuar a dar à nossa pequena cauda, rumo à tona. Sempre para cima. De onde vem a comida.
Navegamos em círculos, em roda das mesmas águas límpidas que vamos sujando. Voltando de onde partimos num movimento contínuo. Mas como somos peixes e as lembranças são efémeras, é como se fosse a primeira vez. Tudo é então divertido. Tudo é novo. Tanto por explorar. Tantos lugares para ir. Tantos peixes para conhecer. Ser peixe e esquecido é uma bênção.
E damos mais uma voltinha.

O aquário é um sítio estranho para se estar. A luz e a escuridão sucedem-se sem que eu perceba como. Agora é de dia, de repente é noite. Quem comandará o interruptor? Sou um peixe curioso…
Sou sereia a tentar entender. Com as escamas arrepiadas, nado um bocadinho mais além. Violo as fronteiras do conforto que anestesiam o meu espírito eternamente jovem e espreito o abismo à minha frente. Já fiquei muitas horas a olhar, apenas. Tinha esperança que o desconhecido viesse até mim. O que aconteceu, depois de eu ter ido até ele. Aceitei o convite e encontrámo-nos a meio.


Ainda não me revelou quem muda a água. Vou continuar a nadar.
Agora que não receio a profundidade, ainda que nunca venha a saber a resposta, sinto-me o mais feliz dos peixes, por me ir descobrindo na pergunta.
IdoMind

about the big, deep, blue sea

setembro 09, 2009

Dormir aqui e amanhecer em outro lugar

Graças ao António escrevi uma carta de amor. Nem sequer sabia que tinha aquilo dentro de mim para transformar em palavras.Fiquei rendida à iniciativa.
Esta será a segunda vez que participo no Vou de Colectivo e tal como da primeira, com um prazer enorme. Obrigada por nos permitires exercitar a fantasia.



Dormir aqui e amanhecer em outro lugar:


"Dia 1
Que frio! Meu Deus, que frio! Parece que fui deixada nua em pleno deserto antárctico. Alguém por favor me ponha uma trapinho em cima, qualquer coisa que faça o meu sangue circular de novo.

E tu? Quem és tu? Senhora, desculpe, quem é você? Não! Deixe-me! Chegue-se para lá.Não me aperte se faz favor! Quero ir para casa! Deixe-me, já lhe disse!
Mas ninguém me ouve? Estarei a falar chinês?
Não entendo porque me ignoram. O que me aconteceu?
Será uma partida do meu filho mais velho? É bom rapaz mas às vezes não sabe quando parar.Se foi ele me me pôs aqui vai ter que ter muito cuidadinho com o carro novo…

Respira. Vá, respira. Tenta lembrar-te da última coisa que fizeste.
Estava a tomar banho quando a água quente faltou.Enrolei-me no roupão já gasto do meu marido mas que, talvez devido ao uso e por muitas lavagens que tenha, preserva o cheiro daquele que foi o amor da minha vida. Às vezes tomo banho só para vestir o roupão e ficar ali perdida naquele emaranhado de 50% algodão, 50% polyester a lembrar-me dos anos de felicidade que vivi junto dele. Vê-lo partir foi o começo da minha espera. Todos os dias que passam são menos um para reencontrar o resto da minha alma. Desde então, toda a dor passou a ser tolerável.

Desci as escadas e telefonei ao Sr. Graciano para que me trouxesse uma bilha de gás. O gás canalizado nunca subiu o monte onde plantámos o nosso ninho. Viver no campo tem destas contingências. Mas também tem Senhores Gracianos, por isso, nunca nada é absolutamente bom ou mau.
Enquanto esperava fiz um chá e sentei-me no pátio. Está lindo o meu pátio, colorido pelas túlipas que me relembram sempre toda a beleza sabiamente distribuída pelo mundo fora. Este pedaço da Holanda no meu jardim já me fez chorar de emoção diante da sua simplicidade celeste. Quem terá feito as túlipas? E as nuvens brancas que parecem dizer que estão lá para amortecer a nossa queda.O céu. Quem se lembraria de um tecto mais perfeito?
Lembro-me de estar nestas divagações quando a campainha tocou.Fui atender.


Depois há um enorme vazio na minha cabeça. Não me lembro de mais nada. Quando voltei a mim estava neste sítio, com estas pessoas que não conheço.

Estou cansada. Vou dormir talvez acorde e perceba que estou a viver um pesadelo muito real.

Dia 2
Não resultou. Continuo presa aqui. Estou pesada, não me consigo movimentar com liberdade. Custa tanto. Vou voltar a dormir.

Noite do dia 2
Acordei encharcada num liquido qualquer. Arde. Ajudem-me! Senhora, por favor ajude-me!
Obrigada. Já estou melhor mas agora não consigo adormecer. Que saudades do meu monte. Da minha estufa. Será que os meus rapazes estão a tratar das plantas. As orquídeas não se vão aguentar sem ouvir Anthony and the Jonhsons. Espero que se lembrem de ligar a música para elas. Que sono…



Terceiro mês
Continuo sem perceber o que me está a acontecer. Noto que as minhas memórias estão a enfraquecer. Há detalhes que já não me lembro. Tentei por exemplo visualizar a vila e as pessoas mas não consegui. Lembro-me apenas da igreja onde passei várias horas a tentar compreender porque Deus achou que precisava mais do meu José do que eu. Lembro-me também do padre. Jovem e com ar bondoso. Fala-se de um romance entre o querido pároco e a filha mais nova da padeira. Também me pergunto porque não pode um homem de Deus ter sexo. Será o sexo pecado? Então não alcanço qualquer motivo para o Criador de Tudo nos ter feito capazes de ter sexo mesmo quando não podemos procriar.E acima de tudo, porque fez o sexo tão bom.Há muitos mistérios que gostaria de ver respondidos, mas com a minha forma de pensar parece-me que vou obter as minhas respostas no Inferno…É melhor tentar dormir.Curioso, durmo cada vez menos.

Décimo mês
Toda a gente gosta de mim. Continuam a ignorar a minha vontade mas dão-me muitos carinhos e parecem ficar rejubilantes cada vez que dou uma gargalha na cara deles.Gostam de me ver feliz. Para começar podiam dar-me outro tipo de comida, conforme já estou farta de pedir…Ainda não consigo dominar a língua indígena.


Primeiro ano da minha estranha experiência de sequestro
Hei! Ninguém vai atender? Estão a bater à porta.
Não acredito! Não acredito!Pai! É o meu Pai! Mas…não entendo, está ao colo de alguém.
Espera aí…Eu também! Tenho pouco mais de meio metro!

Agora lembro-me! Lembro-me de tudo!
Quando fui atender a porta naquele dia há muito tempo atrás, não foi o Senhor Graciano que me levou a bilha do gás. Foi um rapaz. Lindo! Moreno, olhos grandes, negros salpicados de pintas cor de mel. Se tivesse uma oficina ele seria o rapaz do calendário.Acho que o meu coração finalmente cedeu perante a visão do menino da bilha do gás.
Lembro-me de fechar os olhos e sentir-me a voar.Um leve aperto no peito seguido de uma sensação de grande liberdade.
Eu morri…
Isto muda tudo.
Morrer é afinal apenas um leve adormecer e acordar. A vida num piscar mágico de olhos.
Gostava de me lembrar disso da próxima vez que adormecer para uma vida. E de todas as vezes que vir outros a adormecer. Na verdade estarão só a acordar. Para outra vida. Para outra aventura. Para a uma nova e magnifica oportunidade de se recriarem.
Como esta que agora tenho. O meu pai está cá. Será que o José também?"

IdoMind
about awakenings
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...