- Eu enfrento o medo. Não te enerves. Mas não te parece razoável que primeiro conheça a cara do inimigo? Se sair por aí a esgrimir contra tudo o que me exige algum trabalho interior posso acabar por ferir de morte o que me sustenta na hora da luta. Lembras-te do vick vapospray? Horrível! Dormir com o mentol aos pontapés no nariz e aquele frio pavoroso no peito. No entanto, de manhã, estávamos tão frescos como o vick para irmos para escola, mal nos lembrando das dores de garganta e a abusar do ar aspirando-o nas doses xxl, que antes do creme só entrava na versão xs.
- Tu és impossível! Eu estava a falar a sério de coisas sérias e era vick vaporub!
- Só porque tem graça não pode ser sério? Se engraçássemos com as coisas sérias da nossa vida, viveríamos em Graça.
- Eu estou mais para o desgraçado. Queria tanto ter a certeza que estou a agir correctamente. Pelos motivos certos e não por medo.
- Queres-me séria, não é? Vamos então a isso que ficas muito mais engraçado sem sombra.
- Queres-me séria, não é? Vamos então a isso que ficas muito mais engraçado sem sombra.
Não tenho talento para psicóloga e chego a duvidar se tenho jeito para ser pessoa mas, uma vez que pedes, dar-te-ei a minha opinião honesta e, provavelmente, vais concluir que quem precisa de ajuda profissional sou eu. Só te posso falar de mim e repartir contigo como é que foi seguir em frente com aquilo que ficou lá trás. Com o que decidi trazer e com o que veio sem convite. A mulher que tens diante de ti, considera o que acabaste de dizer bastante infantil.
Não tens dez anos para precisares de supervisão para viver. De uma validação exterior para os teus actos. Só as crianças que ainda não tiveram nem tempo, nem espaço para irem construindo o seu próprio quadro de valores, necessitam de conformar as suas decisões pelo que lhes dizem os adultos. Por aqueles que já tiveram muito tempo e muito espaço para distinguir o trigo do joio e transformar um em pão e outro em lume. Mas até as crianças crescem e o quadro de valores dos pais, dos avós e de gente com réguas, a melhor razão e todas as respostas, fica apertado e deixa de servir. Grande parte da nossa existência, se não mesmo toda, é passada entre o esboçar e o apagar das nossas heranças morais. E imorais.
Os míudos tipo aqueles do fundo da sala, libertam-se do quadro ao murro. À rebeldia, à desobediência, ao aleijar o mais possível porque agora é a minha vez e à minha maneira. Têm graves problemas auditivos, do pouco uso que dão aos ouvidos, e estilhaçam o quadro com os pulmões. Muitas destas crianças não chegam a crescer. Não se soltam do quadro nem constroem o seu próprio. Vivem desenquadrados.
Os míudos da fila da frente, esses tomam antidepressivos. Levam uma vida a libertar-se do quadro, do qual pensaram ter saltado fora com o primeiro emprego ou a primeira casa. Ao quinto emprego ainda não são capazes de dizer que não, de pedir um divórcio, de partir de propósito o copo no restaurante. Têm problemas de expressão. Questionam o quadro. Odeiam o quadro. Culpam o quadro pela inércia e pela cobardia que os mantêm enquadrados. Acabam quadrados.
Conheci um caso triangular, porém. Foi para o Egipto porque estava convencido de ter sido sepultado numa pirâmide com o Faraó e precisava de lá voltar para perder o medo reverencial que tinha pelo pai actual. Pois...
Essa certeza que queres, és tu à procura da porta, dentro do teu quadro, para o corredor a seguir. Não tenho a certeza que a alcances enquanto não abrires outra porta, a da saída.
É preciso correr, cair, abrandar e cair na mesma porque há pedras com o nosso nome inscrito. É preciso aprender a saltar… Estender as mãos, largar outras, dar os ombros e pedir por um. É preciso ficar sozinho. Abandonar e ser abandonado. Terias de ter sido pai e filho, preto, chinês, gostado de homens, mulheres e tudo à mistura. Terias de ter sido mal-entendido e entender mal. Não te quereres dar a entender. Precisavas de ter entrado em todas as casas e ficado uns tempos. Sentares-te na sala de estar doutros quadros e ficar à conversa sobre a correcção e incorrecção do que por lá se pratica.
É louvável a vontade de agir bem. É a mesma que me motiva. Tens aí a tabela que me emprestes? Essa das duas colunas com um risco de alto a baixo a separar o mau do bom. Já agora, como é que te veio parar ao colo?
Para teres “certeza” é preciso ires à Origem. Se lá chegares a única certeza que encontrarás é que não há uma certeza mas tantas quantas as almas e quantos os caminhos e quanto as dores e quantos o melhor que se conseguiu, a coabitar nesta bola forrada com uma noite e um dia a revezar-se, no mesmo beijo fugaz de olá e adeus.
Percebes o que te quero dizer? A certeza com dois lados ainda é certeza?
Eu enfrento o medo. Claro. Já me basta ser teimosa. Não quero ser maricas. Enfrento o medo se for de falhar. Se for de perder. Se for de não gostarem de mim. De decepcionar ou de dar um beliscão em expectativas estrangeiras. Enfrento todos os medos que estrangularem a liberdade de me experimentar ser todas as coisas que precise de ser para chegar à origem e constatar que estive sempre certa…
Entretanto, sem certezas, vou escolhendo, de entre todas as escolhas, a que se aproximar mais daquela que eu gostava de ser se, em vez de humana e ainda por cima mulher, fosse perfeita. Angelical..
Como seria eu de asas em vez de génio? E tento sê-lo, um verdadeiro anjo.
Como seria eu de asas em vez de génio? E tento sê-lo, um verdadeiro anjo.
Tinha de acabar com graça… ;)
IdoMind
about not being paralyzed by doubt