setembro 28, 2012

Entrecortes



As árvores pararam de conversar e fecharam os galhos aos pássaros, que naquele fim de tarde tiveram de procurar outro sítio onde passar a noite. Uma dor forte no coração obrigou-a a procurar a cadeira mais próxima, conforme a luz lhe fugiu dos olhos empurrando-a para a negridão agoirenta que conhecia tão bem. Desejou com toda a força estar enganada desta vez. Só desta. Faria como o resto das mulheres e passaria a ir à missa. Todos os dias. Entregaria tudo quanto possuía à Igreja, aos pobres, a alguém, se isso contentasse Deus e O demovesse de lhe roubar o único bem de que precisava. Odiou Deus por nunca desistir dela.
O rio descalçou-se para passar sem fazer barulho. O sol despediu-se em silêncio levando o último raio numa carícia amiga pelo seu rosto. Tudo estava tragicamente imóvel e ela soube que ele partira. De novo.
Adeus aos abraços de até logo e de bem-vindo, dados com a mesma alegria à porta de casa. Adeus ao cheirinho a floresta no pescoço do seu homem e à maciez das mãos fortes que a mantinham onde era o seu lugar. Adeus às flores selvagens colhidas com respeito, para oferenda à vida simples, suficiente e abençoada que encontraram juntos. Adeus.
- Ate já meu amor – disse pela manhã, num murmúrio vencido, olhando as mesmas árvores caladas, o mesmo rio descalço e o mesmo sol mudo. Levantou-se e desapareceu no interior, muito escuro, da casa.

Andou o resto do dia angustiada e nem o livro dos sonhos que mantinha sempre perto da cabeceira, acordara simpático, negando-lhe a pista que geralmente lhe concedia sobre as viagens estranhas que fazia enquanto dormia. Procurou desligar o botão que mantinha as imagens nítidas daquela espécie de pesadelo, a passar-lhe na cabeça. Todavia sem sucesso. Se tivesse talento, conseguiria desenhar com detalhe a cabana e as montanhas altas que se deixavam avistar da entrada, do quarto do casal e da divisão onde ela se entregava à preparação de umas misturas procuradas pelas gentes da cidade. Eram as únicas visitas que recebiam. Ocasionalmente alguém subia a ladeira íngreme para falar com ela e pedir-lhe um dos seus preparados. Também conseguiria desenhar os frascos. Com uma precisão perturbadora. Podia fazer um quadro das mãos dele… Que bizarro.

"Acorda!"ordenou-se. Procurou articular factos num requerimento e dar-lhe uma moldura jurídica a combinar, porque era para isso que lhe pagavam. Tinha trabalho para fazer e tinha também vindo a aprender que sonhar é um luxo reservado a um punhado de eleitos. De protegidos. Ela não era uma eleita. E a sua protecção partira num fim de tarde deixando-a partida ao meio. Ela era só alguém com um trabalho para fazer. Concreto. Real. Impresso em papel. É quando a imaginação supera a realidade que viver começa a tornar-se incomportável. Experimentara recentemente a diferença entre acreditar e o delírio e fixou-se de imediato no monitor onde a versão de um acidente esperava para ser contada.
Foi assim, com a tenacidade característica, que procurou ensurdecer-se àquilo que nitidamente queria fazer-se ouvir naquele dia. E que dia! O livro dos sonhos mal-humorado, o céu com um ataque de teimosia e ela cheia de medo sabia lá de quê. Tinha um peso nos ombros.  

“Muito antes de os padres terem sido inventados e de as leis terem condenado o amor a viver com elas dentro do mesmo livro, nós já éramos um só sacramento. Foi o que te quis mostrar ontem, porque te sinto mesmo quando dormes. Sei que está a ser difícil. Falhei-te. Eu sei da pedra e sei da praga.”

Aquele pensamento que lhe falou para lá da carne, despoletou uma injecção impiedosa dos últimos sete anos da sua vida. A dose circulava-lhe descontrolada nas veias inibindo-a de racionalizar. Percebia agora que tinha os ombros pesados porque tinha as costas carregadas. De lixo. De pontas soltas. De rendições.  Nunca se fez uma limpeza lá atrás e as costas não tinham nem espaço, nem força para mais carga. Seria impossível continuar sem tirar aquilo tudo dali.
Era preciso arranjar onde arrumar a felicidade, caso, por um acaso, a encontrasse por aí à sua procura.

A pressa do mundo não era um refúgio, mas sim um esconderijo. Tinha andado escondida na marcha de passos acertados numa direcção comum e a um ritmo coincidente. Que descanso não andar desgarrada e saber que havia cães ao longo do caminho. Chegar a casa todos os dias ilesa do ataque de alguma mudança maluca ou muito cara. 
Mas alguma coisa mudara. Deixara de conseguir fazer de conta que não era nada aquele vazio constante sobre o qual já lera centenas de descrições literárias. Era mesmo assim como se escrevia por aí, sentia uma falta. Havia uma ausência.

Para se desviar de si mesma e do embaraço destes sentimentos demasiado femininos, fingia que era apenas a vida e as suas coisas pequenas mas gordas. Pesadas. Não andava triste, estava preocupada. Havia contas com prazos limite. A saúde do pai que gradativamente se tornava mais débil. Tinha problemas para resolver e tinha descoberto uma linha enorme de cabelos brancos no topo da cabeça!

Não queria sentir nada, queria o mundo! Por favor. Disputas pelo melhor lugar na empresa ou num estacionamento. Queria o ruído da ignorância, o puto dos vizinhos que não via varandas, via balizas. A conversa inútil e neutra a circular sem sair do sítio, nem ampliar nada além da mesquinhez e o jacto de veneno. Queria o trivial dentro e fora, à volta e por cima de cada segundo da sua vida apenas para que não houvesse a menor abertura por onde pudessem entrar... as saudades.
Viu-se de novo, largada e esquecida, numa pedra à espera.

IdoMind
about ending 

setembro 19, 2012

Lótus nos Pântanos



Numa manhã clara, muito mais clara que todas as outras manhãs desse ano, enquanto  encaixava na respectiva casinha, o último botão da camisa branca de linho, a que tinha pelo menos duas histórias interessantes para contar, sentiu-se despida. Com frio até. Um arrepio invasivo apalpou-lhe a pele e foi como se tivesse deixado de estar sozinha. Havia mais alguém ali. O espelho mostrava a mulher composta do costume, pronta para colocar o pé fora da porta e, sem embaraços, enfrentar a avalanche de reuniões, telefonemas e aquele almoço para cujo adiamento já não havia mais desculpas.Porém, nessa manhã clara, nasceram olhos ao espelho e diante de si viu-se morta.

Recuou um passo. Não se assustou, assombrou-se…Tinha falecido sem perceber.

Por baixo da roupa a condizer, dos adereços que lhe conferiam o toque de distinção e do aspecto sempre cuidado, jazia uma defunta já sem cor a implorar o enterro. O descanso merecido. Cumprira com mérito a sua função e gostaria de partir com a dignidade de não andar arrastada e a deitar cheiro.
Ao contrário do que acontecera noutras manhãs, que não tiveram a claridade daquela, não passou o lip-gloss rápido e foi embora. Não. Ficou. Para onde iria naquele estado? Será que alguém já havia percebido que carregava um cadáver? Com frequência somos os últimos ver o óbvio no que nos diz respeito. Porque fizera para manter a sua vida privada, muito privada, seria natural que mesmo que tivessem reparado, ninguém lhe tivesse dito que estava a cair aos bocados. A sua personalidade forte criava um círculo bem definido dos limites permitidos. E da área extensa, protegida da presença alheia, inteiramente impenetrável. Qualquer personalidade forte sofre de solidão e tem de aprender a lidar com isso. Umas tornam-se mais fortes e mais sozinhas. Outras traçam novos círculos. Outros limites. Mas nunca é simples para quem é forte vencer a sua própria força. Entregar, sem resistir, o corpo ao movimento perpétuo e invencível dos ciclos da vida. Dói tanto a metamorfose aos fortes.

Foi no limbo entre o que tem de ser e a verdade que sobreviveu. Até ter morrido. Deve ter sido de tristeza. Morrera triste e rouca. Pobre alma aos berros por socorro, refém de uma trapaceira bem-disposta e sem um único problema neste mundo. Arranjara sempre forma de colocar toda a gente no topo das suas prioridades para não ser obrigada a fazer alguma coisa por si mesma. Além de triste e rouca, partiu exausta com toda a certeza. Como conseguira chegar tão longe sem pedir ajuda...Onde fora ela buscar os mantimentos, assim sitiada em si…
Talvez os fortes sejam afinal imbecis.

Tinha andado a viver ao avesso. O que não é aceitável é ignorar as nossas necessidades mais íntimas, condenando-as à cave da nossa essência. Procurar falar com elas. Estudá-las. E depois satisfazê-las. Ou não.  Inadmissível é suster e silenciar aqueles minutos de desespero latente, inoportuno, até que caiam no esquecimento, substituídos por outras preocupações, por esta ou aquela exigência urgente e impreterível. Por um desespero renovado. Isto é que é inaceitável.
Recebera parabéns por condutas das quais tinha agora vergonha. Que vitória ter morrido sem ter desapontado ninguém. Que orgulho ter conseguido, independentemente da contrapartida, estar à altura do que esperavam de si. Pode-se sempre ruir mais tarde. Pode ficar para depois o já não aguento mais porque, com o sacrifico que redime, se aguenta mais um quilo ou dois. Toneladas, se for preciso para não expôr os nossos calcanhares enfraquecidos pelas emoções.

Se não nos dominarmos alguém o fará. A morta sabia-o. Controlava-se por isso. E controlava. Tudo quanto fosse controlável. Apesar de ambiciosa, esta tarefa era executada com relativa facilidade, uma vez que vinha equipada com a sensibilidade necessária para quase imediatamente identificar o tipo de combustível com que cada um se abastecia. Agradecia esse dom. Fizera um bom uso do mesmo levando entendimento onde a intolerância queria fazer estragos. A pouca paz na passagem para a que havia de vir no lugar daquela, residia nas raivas que aplacou com a brandura das suas palavras e o convite sempre estendido a visitar as aflições que moravam do outro lado da guerra. Tinha sido uma boa mensageira. Sem controlo teria sido impossível fazer chegar a mensagem intacta. Chegaria corrompida pela desordem das próprias fragilidades. Amassada e deturpada pelos próprios medos e inseguranças. Estas fraquezas tinham de ser controladas. O que ela conseguira com sucesso.
Que pena não ter percebido que a sua própria reserva estava com a luz vermelha acesa. A dar alarme…

Não havia nada a fazer. Morrera. Tinha de deixar ir a pessoa do espelho. Coitada. Que diabo de purgatório ser obrigada a morrer todos os dias. A perder todos os dias…E fingir que não.
Como a manhã estava muito clara, passou na mesma o lip-gloss e saiu. Foi investigar a causa da sua morte para poder começar a pensar em nascer outra vez.

IdoMind
about  the  8th House

setembro 11, 2012

Quesque tu pense, que viver não canse??



Pudeste brincar. Pudeste fingir. E pudeste ir quase até ao fim. Pudeste adiar. Pudeste mentir. Pudeste dizer sempre que sim. Pudeste mais ou menos estar lá. Mais ou menos dar de ti. Mais ou menos ser feliz. Ou assim-assim.
Pudeste arranjar desculpas. Cegar-te com terras e com pessoas inventadas. Pudeste evaporar nas saídas de emergência para as trevas encobertas de boas intenções. Colar a fotografia bonita no teu passe falsificado com acesso a todo o lado. Passar por portas desenhadas, rasuradas, alargadas ou oportunamente estreitadas. Friamente apagadas. Abruptamente encerradas. E pudeste deixar de fora quem pediste que te visitasse. E que se mudasse para ti. Pudeste abusar das brechas nalgumas paredes e fazê-las buracos. Grandes. Escancarados. Pudeste não ter cuidado. Ou muito pouco. O necessário para não te deitares uma má-pessoa, nem te detestares além da medida habitual.

Pudeste organizar uma festa no teu umbigo e juntar os sentimentos todos para lhes dar nomes novos. Mais modernos. O Amor, por exemplo, está ultrapassado e deixou de funcionar. Ficou para trás, aconchegado no tempo que não tem pressa de acontecer e que não tem medo de enfraquecer. Sabe que ficar maduro não é ficar velho, é ficar pronto…

Pudeste pôr o Amor à espera mas deixaste de o esperar. É por isso que deixou de ser amor e hoje lhe chamas “Espaço”. Tu no teu. Eu no meu. Ele no dele. Ela no dela. Cada um no seu espaço, sem espaço para receber o Amor. Cada um no seu tempo, ao seu tempo, sem tempo para o Amor. Fica mais bonito dizer assim. Que é a vida e andamos todos perdidos. Numa fase egoísta...
Não é que não se queira rasgar ao meio e pôr as tripas em cima da mesa, é só “complicado”.
Não é que não se tenha estrutura para outra rejeição, é só melhor sem compromisso e depois de lençóis trocados, a liberdade de novo.
Não é que seja cobardia, só não se sabe muito bem o que se quer. Ainda. Por enquanto.


Entretanto, no espaço sem espaço e no tempo sem tempo para o Amor, não se pára de existir e não se pára de sentir.
Pudeste perder-te por lá, nas escolhas fáceis terminadas com um “não faz mal” que fez todo o mal que podia fazer. Pudeste convencer-te que não. Que a tua leveza não faz pegadas quando passas. Onde pisas. Pudeste sossegar-te na sinceridade que te iliba da culpa, como se pedir para usar alguém fosse só por si sincero. Limpo. Digno…
Pudeste ignorar a tua responsabilidade na infelicidade que te grita na cara. Há enganos que vão embora calados. Outros, porém, partem com barulho. E partem tudo porque pudeste magoar.
Conheces mas não te reconheces nessas dores no peito que não é o teu. Apesar de ser. Só não o sabes. Um dia vais saber.

Como pudeste?

Somos teus, Agora, ao serviço do resto dos teus dias. Rompe-nos com carinho a virgindade das linhas vazias a encher pela tua mão. Pela tua acção. Escreve-nos bem, seres mágicos esquecidos e caídos numa vida complexa, exigente e rápida, sem varinha e sem poções. Só nós, na luta connosco pela paz dos outros. A dar o corpo e o que nem sempre temos, pelo menos, para não ficar pior. Nem virarmos os monstros que combatemos. Estes somos nós. A remexer a terra para não sermos enterrados vivos. É já tão difícil. Dispensamos todos os obstáculos que nos possas erguer. Prescindimos das mentiras em que nos possas prender. A cruz nós levamos, são os pregos na carne que nos roubam a força... Fica por isso quando nos vires passar, se não estiveres certo que vens para ajudar. Agradecemos a tua omissão honesta.

Nas minhas linhas vazias, que combinei guardar para ti, peço-te que me deixes uma história de Respeito. Marca-me assim. Que eu te lembre honrado. Verdadeiro. Pessoa…
Que associe a ti a esperança nos afectos e a força de duas mãos dadas em alto-mar numa tarde em que tudo correu mal. Que o meu coração se expanda ao som do teu nome e possa  falar com gratidão da tua travessia por mim. Faz por me fazer sorrir quando já não estiveres aqui e onde quer que te encontres, sabe que me respiraste e me devolveste sem detritos.

Pudeste dividir-te e guardar a consciência longe dos desejos. Das muitas carências. Da necessidade básica de te ouvires a viver. Compreendo tudo isto. E pudeste por tudo isto ceder e ser igual. Fazer igual. Dizer que é normal.
Mas podes parar se quiseres. Já. Junta-te a ti. Abraça-te inteiro para que sejas inteiro em todos os abraços. Traz-te e entrega-te como te descobriste até nos termos descoberto.
É o que basta para seres lembrado como um homem a aprender.
Apenas.

IdoMind
about that far, far away planet of Bullshittia 
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