outubro 26, 2012

O Guia


As suas primeiras palavras eram invariavelmente pedidos de desculpa quando ali ia daquela maneira.  "Desculpa! Desculpa! Desculpa!" dito a valer, com os olhos quase a tocar a nuca de tão cerrados que os punha. Pesados. Com a culpa pelas distâncias que achava que percorria sozinha e desligada. Para bem longe de todos e para muito longe de si. 
Havia dias, convertidos em meses, em que não queria saber se era infinita ou se tinha um prazo improrrogável a pender-lhe na consciência e a mandá-la viver em condições. Com juízo. Com respeito. Sempre. Em toda A Parte. Mas que não se esquecesse da audácia que chuta os pernas para a fronteira entre os abismos e o aprender a voar. Guardara sempre um ou dois quilómetros confortáveis entre o agora e o abismo. Ela não sabia se voava.
Que vergonha. Uma mulher feita que não sabia voar. 
Estava-lhe a dar para se contrariar com a vida e o seu despropósito. Estava a dar-lhe forte nestes dias convertidos em meses. De tal ordem que chegou a desejar que não existisse nenhum Além, além dela, para que ela existisse como quisesse. Sem se policiar. Nem sentenciar. Sem se interessar por ouvir a voz dos céus nas pequenas geometrias com caras e relógios que lhe iam indicando se as suas vontades eram coincidentes no passo que ela estava prestes a dar. Nunca ia a lado nenhum sem atenção. Foi por isso que só aprendeu a andar.
Belo lugar para o qual havia sido conduzida pelas suas convicções. Quem lhe dera ser livre do espírito. Poder terminar o namoro com a alma para ficar a viver apenas com a inteligência. Davam-se tão bem.
Sim. De tão cansada, estava especialmente parva. Reconheci-o naquele momento sem norte ou qualquer outra direcção que lhe desse um encontrão no ombro gritando "Na minha luta está a minha Glória. Agradeço-te Senhor por me mandares a guerra e me dares a Espada" como gritavam os guerreiros antigos doando o corpo ao Fado, sempre de pé.
A dúvida levou à crise que levou à pobreza que a levou a ela. Estava tudo em questão, susceptível de ser discutido, revogado, substituído ou mantido depois de reforçado. Sincera e brutalmente validado. O que ficaria depois desta Entrega?


Vivera iludida na escolha que na verdade nunca teve. O alcatrão é afinal feito de água e escorre obediente a desaguar-se pelo curso invisível que conhece desde o Princípio de tudo. Indiferente às represas levantadas pela vontade medricas de manter os pés secos.
Vira muitas casas firmemente casadas com o chão, a estremecer com a corrente. Caíram inteiras e nem os dedos de todas as mãos bastaram para suster o choro jorrado pelas paredes. As fundações afundaram-se. O solo rijo tornou-se mole e fez-se barro. Ou lama. Uma vontade alagada nem sempre consegue distinguir o que é aquilo que fica depois da catástrofe. São os escombros a esconder as margens lavadas e prontas para de novo se moldar o dali para a frente.
Por isso não se escolhe, aceita-se o Desafio sem saber como e quando e em quem acaba.
Há três catástrofes atrás, lembrava-se de ter falado consigo para que da próxima não se esquecesse de pedir que lhe ligassem as luzes da Estrada para ver melhor o estado do piso. Detectar obstáculos. Para destapar os acessos e as saídas e os lugares a que iam dar. Mas o tempo acontece. As decisões sobre o que fazer para jantar e o melhor seguro de saúde atravessam-se, atirando o lembrete sobre a Iluminação que em tudo é essencial, para último lugar da pilha na sua secretária mental.
Via-se sem nada para dizer excepto “Desculpa... Desculpa... Desculpa...”.
Mordera o berro do guerreiro e negou-se à luta. E com isso à Glória.
Acreditou-se autónoma. O medo havia-a tornado arrogante. Convenceu-se que tinha um autocarro por sua conta e não viu que ia lotado. As paragens em que não saiu, e cujo sentido lhe escapou, foram importantes para alguém. Houve um homem, houve uma mulher, houve um homem com uma mulher, houve uma criança, várias, com o pai, com a mãe, só com a avó, houve quem precisasse de abandonar aquele destino. Ou descansar por um bocado. Andar a pé...Esperar que a Estrada recebesse Luz para ver por onde ir. 
Na dela brilhava um holofote e a seguir às desculpas houve um agradecimento.Tão sentido. 
Havia uma paragem na qual muitos passageiros se juntaram para lhe traçar um novo rumo.Grata, redigiu com a mão direita outro lembrete a dizer " Confia."

IdoMind
about sudden and quite disturbing movements of the earth around Ericeira

outubro 23, 2012

Valeu a pena?



Pressinto-te o inferno no sangue. Outra vez. Sinto-te infectado na força e na fé. Não, não é essa fé. Essa que faz olhar para cima é a minha. A tua é outra e faz-te olhar para a frente. Está na certeza que não confessas e que só para seres pior contigo não admites, de que estás destinado a outra coisa. A outra vida porque na que vives já lá não estás. Se é que algum dia por lá andaste.
Hoje sou a voz na tua cabeça à solta num Jardim. O nosso. Hoje sou a música de fundo que te pergunta o que viste quando o oceano conheceu o céu. E te fala do que perdeste.
Hoje sou tu na versão generosa consigo mesma a dizer-te: tu não és um erro.
Errados estiveram o que te fizeram sentir assim e que sem levantar a cabeça para te ver, te tornaram invisível. Agora, inalcançável...
Foste-te retirando até deixares de aparecer. Mas meu amor, tu nunca estiveste a mais. O que tiveste foi a menos do pouco que já pedias. Até que te calaste de todo. Até hoje.
Onde estás tu? Onde posso encontrar o homem com as entranhas que falam? Onde está o meu igual? O que entende mesmo o que eu não digo e adivinha-me as montanhas para lá da rua plana, na vida lisa que aparentemente habito. 
Para onde levaste a tua lua a chorar? 
Tu não tens de esconder a noite, que em ti é tão estrelada. 
Onde sufocas tu a tua própria luz? Dói muito?
Sai daí. Podes parar de ter medo de nós. Não permitas que te assustemos ao ponto de andares fugido de ti. Somos nós que te tememos. Julgas que não ouvimos o ladrar feroz da tua diferença astutamente domesticada? Ouve-se. Ouve-se ao longe a promessa de guerra e de morte antes que os teus joelhos encontrem o chão e os teus olhos se curvem sobre os  sapatos de alguém. Dizes isto tudo sem pronunciar um som. Isso assusta. Ao ponto de fugirmos de ti.
Perdoa. 
Todas as portas violentas, polidas, com licença ou sem ela, que te fecharam na cara. 
Todos os afectos que te negaram só para ver se a tua pele também rasgava. 
Perdoa o veneno que ainda te escorre pela estima própria abaixo. 
A ignorância… 
Se fores capaz, perdoa também a maldade. Ainda acredito que se apanha por aí entre um pontapé e uma desilusão. Ensinada e não gerada. Ainda acredito que não há gente má, apenas pessoas mal-amadas.
Deixa partir as almas verdes, imaturas ou podres e deixa-as levar os seus ovos.
Não apanhes maldade por aí, entre um ressentimento e um assunto mal resolvido.
Há sítios onde nos aleijam a que só nós chegamos. Nesses albergues das feridas que viram chagas, para curá-las é preciso querer entrar, sentar e ter aquela conversa connosco. A que deixámos para depois de culpar os outros. De os responsabilizar pelos actos que consentimos e outros tantos que solicitamos, no silêncio cobarde de lutarmos por nós a inventar de sermos felizes. 
O inimigo não se esconde nas fraquezas que quem também ainda está a arrepiar caminho. Com tanto custo. Como nós. Só que com outro corpo. Com nódoas negras à mostra e outras tapadas. Como as nossas. 
Pára por isso de os perseguir na incompreensão,  na ausência de calor, na ingratidão ou na miséria interior que te são impossíveis de alterar. Sequer de entender enquanto não souberes quem és. O que queres…
Cuida de ti. Estarás a cuidar de todos.
Trata-te, memória a memória, com as mãos ungidas de carinho pela pessoa maravilhosa que és. 
Acredita em ti se não quiseres acreditar em mais nada. Por favor, ajuda-te.
Se permitires, noutros sítios podem aplicar-se outros curativos. 
Abraços apertados. Amigos que aparecem. Amo-tes…
Esperança.
Eu espero que consigas.
Eu espero que venças.
Eu espero por ti.

IdoMind
about my best friend in the world, you.

outubro 05, 2012

Histórias de Piqueniques




De braços cruzados, olhava do passeio o reboque a raptar-lhe o carro. Nada a fazer. Nem aquele pestanejar meloso que sempre quisera experimentar, surtiu algum efeito e foram-lhe negados os dias que implorou para resolver a situação
Este é o início do que seria uma história simples sobre uma mulher complicada. Mas complicou-se. Parece que isso acontece muito quando as mulheres se envolvem nas histórias. Um dia têm de aprender a passar pelos campos sem estender logo a toalha para fazer um piquenique. Naquele sítio onde a relva parece mais verde. É aqui que se complica. Se calha de ser bom, no dia a seguir a mulher traz mais comida. Perde horas atrás do fogão. Dá-lhe para cantar e  põe todo o amor na mais humilde das tartes. A toalha já não é uma qualquer. Tem de ser aquela! A bonita que a tia que mora no estrangeiro lhe deu quando fez dezasseis anos. A irmã diz-lhe que é mal- empregada. A amiga pergunta-lhe se não está a ir depressa. Quer lá ela saber? A partir daquele momento, dividir sonhos, mesmo que a comer sentada no chão, deixou de ser um mero piquenique e tornou-se o princípio de uma história.

Que podia ser simples. Mas as mulheres não sabem fazer piqueniques…

Esta é a história da Martinha, uma mulher que saltou a fase da toalha e passou directamente para a mesa de jantar no 2.º andar esquerdo da sua parcela de ilusão. Acreditou e abriu todas as portas à frescura da esperança de, agora é que era, ter acertado na parte que lhe faltava.
Estendeu, feliz, a sua vida naquele pedaço de relva que nem sequer era muito verde. Não era definitivamente a mais verde. Mas acontece de facto qualquer coisa aos olhos das pessoas quando se apaixonam porque vêm o invisível e não enxergam o evidente. As cores também se baralham um pouco e os tons tornam-se meio indefinidos. Para Marta era verde alface. O resto do mundo jurava que era amarelo desfalecido. Todavia, sabido que é, que com maior ou menor gravidade, intensidade e duração já todos padeceram deste mal oftalmológico, ninguém contestou o que Marta via naquela espécie de homem.

Lamentável, mas não surpreendentemente, o sonho começou a perder cor. E o homem a revelar que não tinha nenhuma. Pelo menos, não tinha UMA cor  Tinha muitas, todas desmaiadas. Não havia nele um tom mais forte, que sobressaísse. Que no fundo, o definisse. Ser incolor não seria problema se a falta de vértebra não enfraquecesse,  com a lentidão mortífera de tão lenta, o que precisa de dois pares de mãos para sobreviver. Havia  dois pares de mãos naquela casa mas cada um a empurrar o seu lado da parede. 
E se há dias em que se acorda com a determinação imatura de fazer com que tudo volte a ser como era antes, ao tempo do “para sempre” sem ponto de interrogação, na maioria dos dias o mundo anda de caneta a jeito para corrigir e pontuar devidamente as nossas certezas... Às vezes Marta acreditava que aquele amor todo não podia ter acabado. De todas as vezes que olhava para ele, sabia que sim. Sabia igualmente o que tinha de ser feito. Seria simples. Mas esta é a história de uma mulher complicada. Marta era responsável pela felicidade de toda a gente no planeta e estava proibida de causar tristeza a quem quer que fosse. Muito menos aceitável seria contribuir para a infelicidade dos que lhe eram mais próximos. 
Não podia simplesmente abandonar aquela pessoa. Marta não abandonava. Fora ela quem trouxera a toalha e seria indelicado da sua parte levantar os pratos e ir embora, decidindo por isso ficar a colorir o desenho que só ela via.

Decorreram dois anos. Não aprendeu a refazer desenhos e não conseguiu pintar um sorriso sequer. Mas começou a ver melhor e aprendeu português. Descobriu que cobarde não quer dizer vitima. Nem alguém com azar. Que frieza não é um sinónimo de timidez, nem insensibilidade outro nome para distracção. Marta aprendeu também que o egoísmo é diferente de coragem e que trauma não pode ser usado em vez de estupidez.
Demorou muito a saber distinguir os verbos encobrir e proteger... 
Abandonou. Quando aprendeu que abandonar significava Crescer. Só quem é muito grande consegue perceber a diferença entre largar e temer perder. Largou. Deixou a toalha como estava e foi a chorar fazer o luto de um sonho.

Ainda mal havia desempacotado os restos de uma vida velha na sua casa nova e já o seu  altruísmo lhe estava a valer o carro. Parece que há contas que se pagam em prestações e aquela relação era uma dessas.
Lembrou-se que tinha de juntar bondade ao seu dicionário e fazer corresponder este substantivo à compreensão de si mesma, para que o acto de ser generosa não voltasse a ser confundido com falta de amor próprio.

Sentia-se adulta e esperta. Capaz de tomar conta de si. Com muita competência. Não havia revolta nem abrigava no coração sentimentos menores, apenas uma imensa lucidez quanto às regras mais ou menos mágicas que mantinham a vida a circular. As coisas a acontecer-LHE. Levando e trazendo. Oferecendo e tirando. Mostrando e recompensando.
A percepção destes movimentos tornava menos violento acompanhá-los.
Estaria mais atenta, sobretudo quando estivesse mais triste. Anotaria as desilusões, as preocupações e o que a irritava. Manteria um registo do que não lhe havia agrado, quer nas coisas, quer nos outros. 
Depois, à noitinha, com as emoções a descansar, tentaria destapar-se para se ver mãe daqueles filhos e os  lábios na origem daqueles ecos.  

Questionou se voltaria a cometer os mesmos lapsos linguísticos.
É que esperava voltar a sofrer da vista mas gostava de aprender palavras novas…

IdoMind

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