novembro 21, 2012

Nuns e noutros, nós




Na linha estreita onde a vida simplesmente lhe ia acontecendo, sapateava, há cerca de uma semana, a indecisão entre aceitar e prosseguir, pacificada com a consciência treinada para o bem, ou dar-se ao luxo de pela primeira vez odiar. Não lhe apetecia compreender mais. Apetecia-lhe ter nojo. Deixar-se tomar por todas as emoções equivalentes em força àquelas que o amor produz, mas brotadas do mais profundo desprezo por alguém. Estava com vontade de trocar de equipa para experimentar jogar do lado dos adversários. Dos maus. Dos egoístas. Dos que não se importam. Dos que não se desviam para evitar o choque mas antes cerram as mãos, rangem os dentes e endireitam o peito diante do embate. Que derrubam. Tudo e todos para poderem passar. No fundo, apetecia-lhe ser livre…
Amarrotar e deitar fora uma educação inteira, completamente estéril;  a herança moral que no fim das contas não levava ao céu, nem a nenhum outro lado; o aprendizado social, que tirados os enfeites e eufemismos, a fez apenas cínica. Estava com vontade de meter a Fé num saco, como se faz aos animais nas férias, e abandoná-la num baldio qualquer.
Não lhe apetecia nada, mas mesmo nada, perdoar. Aliás, nunca acreditara no perdão até aquela visita inesperada do passado, que sacudido da terra que ela lhe tido deitado em cima, lhe tocou à campainha pedindo-lhe que lhe abrisse a porta e o convidasse para um chá, como se vinte e dois anos tivessem sido ontem, vinte e quatro horas e não vinte e dois anos. Uma vida. A vida toda da filha que o mesmo passado escolhera ignorar e deixar para trás porque não estava pronto para uma responsabilidade tão grande. Como ela estivesse!
Quem está? Quem é que está pronto para gerar um ser humano e depois assumir o compromisso da sua sobrevivência? Ninguém está. Nunca. Vai-se estando. Vai-se ficando.A cada choro que se vai conhecendo. A cada corrida para o hospital ou para o armário dos medicamentos. A cada pequena habilidade. À esperança da vitória. Às várias derrotas. A cada sacrifico que se faz a sorrir porque o amor é uma espécie de Jesus a transformar água em vinho e a fazer das provas duras, uma festa no nosso coração. 
Este é o milagre do amor – transforma-nos.Torna-nos prontos para sermos outros. 
Evidentemente melhores, porque o Amor não combina com mediocridade.

A filha, incapaz de aprender, tinha-lhe ensinado esta extraordinária lição.
A Maria tinha nascido com uma paralisia cerebral que afectava as suas capacidades motoras e cognitivas. A Maria não andava nem controlava os movimentos dos membros superiores. A Maria não falava e o grave atraso mental impedia-a de aprender, reter, reconhecer ou de qualquer outro acto de natureza intelectual. Maria era um mistério.
O pai não conseguiu aguentar a notícia e menos ainda abraçar a abnegação que criar esta filha implicaria. Partiu por isso. 
Ficaram a Helena e a Maria a arranjar maneira de não morrerem, uma de desespero e a outra da doença. Conseguiram. Ambas. Juntas.
Por muito que se esforçasse e ainda que procurasse usar o mais rico dos vocabulários, Helena não seria jamais capaz de explicar que foi uma honra e não um horror ter tido e criado a filha.
Esta criança, sem nada para dar e sem saber sequer o que é retribuir, enchera de significado a existência da mãe, que tratava o Amor por tu sem que este algum dia lhe tivesse dirigido a palavra. 
Helena nunca ouvira um "obrigado", "por favor"," vá láááá", "és a melhor mãe do mundo" ou "adoro-te mãezinha" mas não conseguia sequer adormecer antes de dizer a Maria "Amo-te tanto, filha. És o meu coração." 
E era mesmo...
Duas vidas fundiram-se e fizeram-se apenas Uma. E se isto não é Amor, então o Amor não existe.

Agora, madura e Mulher (com letra muito grande) conseguia confessar sem remorsos que é claro que teve dias em que pensou em desistir. Entregar a filha a uma instituição qualquer ou terminar de forma dramática com o drama das duas. Sim. Teve dias pesados. Dias insuportáveis que nem mesmo ela sabe como suportou. E que superou.
Afinal ela tinha apenas vinte anos quando deixou de ter futuro. Pelo menos aquele tipo de futuro que aos vinte anos se tem. Deixou de ter um futuro e passou a ter dois presentes.
Também não estava pronta para tamanha responsabilidade, mas teve de ficar. Teve de crescer. Teve de lidar com a ignorância, com a carência de meios e de tudo o resto. Teve de fazer amizade com a solidão porque ser sua inimiga teria sido heróico e ela precisava de todos os poderes para cuidar da Maria. Não tinha uma gota de força para desperdiçar com sentimentos pequenos, problemas pequenos ou pessoas minúsculas.
Devia à filha todas as escolhas saudáveis que a levaram a ter os dois amigos de confiança, tempos livres ocupados com voluntariado, porque os nossos problemas não são sempre os maiores do mundo mesmo que pareçam, e uma alma agradecida pelos ensinamentos que mil vidas não seriam suficientes para ensinar.

Um dia talvez se sentasse com tempo e reduzisse a escrito o vasto menu de episódios que ser mãe de uma criança como a Maria lhe havia proporcionado, bem como as incontáveis e valiosíssimas demonstrações do mais básico funcionamento da natureza humana. 
Por exemplo, Helena representava um teste muito difícil para os homens que se haviam aproximado dela. Era indisfarçável o desconforto deles quando lhes apresentava a Maria. Ela podia ser perfeita, aquilo que esperaram anos e anos a fio, exactamente, sem tirar nem pôr, a mulher da vida deles, mas tinha uma filha deficiente... Sem contar, viam-se assim de repente enredados num dilema moral que os confrontava com uma verdade ou duas sobre aquilo que pensavam de si mesmos. Acabavam, sem surpresa, por desaparecer.
Depois havia quem, pretensamente solidário, gostava de se comparar com ela, confidenciando-lhe que também eram obrigados a abdicar da sua felicidade pela felicidade dos seus filhos. Contavam-lhe tudo de como sofriam e de como toleravam esta ou aquela situação em nome do bem das crianças, concluindo que esse sofrimento necessário, algo apaziguador, constituía a maior de prova de amor de qualquer bom pai ou boa mãe. Aqui, e sem sequer responder, era ela quem desaparecia. Na linha das escolhas saudáveis, havia discursos que evitava.
Havia porém algo que lhe doía um pouco,o pânico das outras mães. Podia ler-lhes o pensamento nos olhos repletos de comiseração quando Helena passava com a Maria na cadeira-de-rodas - "Coitada..." 
A isto ainda não conseguia ser indiferente.

Se eles soubessem… Meu Deus, se eles soubessem que somos todos anjos capazes de tornar água em vinho e cada provação numa bênção, nunca mais seriam infelizes. 
Parariam de se prejudicar uns aos outros porque estariam ocupados a fazer bem a si mesmos.Nunca mais precisariam de ouvir ou de receber nada em troca da bondade. Deixariam se sentir pena e dariam apoio.
Se eles soubessem que a paz está ao alcance de um ponto de vista…
A filha continuava a ensiná-la. A sua divida de gratidão aumentava ao segundo e nem que fosse só por estes momentos de lucidez meio divina, já tinha compensado ter deixado de ter futuro aos vinte anos.
Ela não tinha a nada a perdoar ao pai da Maria. O único mal que ele algum dia fez foi a si próprio quando virou as costas a um Amor Incondicional que talvez em mil vidas não volte a encontrar…
Nem volte a ter a oportunidade de sentir.

- Entra. A Maria está no quarto e eu estou feliz por te ver - disse, com sinceridade, enquanto lhe abria a porta da casa onde só havia espaço para sentimentos grandes, almas a aprender e anjos.

IdoMind
About True Love

2 comentários:

Onda Encantada disse...

hoje falei sobre True Love... mas estava na cozinha e as paredes eram de azulejo, retornavam a mim as palavras...

Belíssimo! quando sai o livro?

Saudades... profundas...

IdoMind disse...

Ondinha...

Que dizer?Parece que os que acreditam nisso, no true love, ficam mesmo a falar sozinhos para os azulejos...

Vou ter muito tempo para acabar.Depois falta alguém a dizer que tenho jeito :-)

Quanto ao resto....you know...

<3 muito

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