fevereiro 27, 2013

Possibilidades


- Para quem duvida que a Terra tem alma, que a percorra com o intelecto e pode ser que a encontre afinal gente. Talvez lhe descubra, nas mãos velhas que lhe pisamos, as marcas de um destino próprio. Entre os seus vómitos e as suas febres, estamos nós, fixos às contestáveis certezas que o formato redondo, pendurado na vastidão, nos acostumou. Só que tudo mudou. E continua a mudar. Os últimos arrepios da Terra tiraram-na do lugar. A nossa Casa tremeu… E desencaixou-se. Contagiámos a Terra com as nossas doenças, seguros de que continuaria a girar, graciosa, infalivelmente, ainda que doente e carregada com o peso da gula sem fim que nos faz gordos, escravos e muito estúpidos.
Temos agora mais pressa e menos tempo. Um roubo quase imperceptível no nosso prazo, que trouxe urgência na cura. E a precipitação para uma morte. Quem não sente? Quem não vê? Dura menos uma mentira. Uma má-acção. Um segredo… há holofotes por todo o lado a acusar a presença dos nossos infernos. Cada vez que a terra se mexe, há um esconderijo a menos. Coitados dos amantes de tocas, cavernas e buracos, empurrados, assim à bruta, para a superfície e para este novo Sol que aquece. Ou queima. 
Lembras-te quando me perguntaste, no dia seguinte ao funeral do Carlos, quais seriam os meus três desejos se desse por aí um pontapé numa lâmpada mágica onde um génio morasse? Na altura não te respondi, tão vazia que estava de desejos. De sonhos. E de Deus.
Um. Tenho apenas um desejo. Se daqui a bocado, lá em baixo na praia, o vento zangado de hoje desmascarasse uma lâmpada mágica, na areia cujo cheiro sei de cor, teria um único desejo – Um novo começo para todos.
Sem dívidas. Sem registos. Sem promessas. Sem culpas…
Um recomeço, cá fora e lá dentro. Pediria, para quem o pede para si mesmo, a Liberdade para se Recomeçar.

O sorriso carinhoso dele dispensava qualquer resposta. Entre a honra de se saber especial para ela e o paternalismo que o fazia preocupar-se com os golpes mais ou menos inevitáveis de um idealismo ingénuo, espelhava no rosto a imensa admiração por aquela mulher, que apesar dos anos de íntima convivência, suspeitava, haveria sempre de o surpreender.

- Não achas então que as pessoas tenham de pagar pelos seus actos? – perguntou, após a empregada de mesa se afastar, deixando-os abandonados ao prazer da personalidade forte do Dão que repousava nos dois copos de pé muito alto e barriga dilatada e à discussão existencial a combinar com o dia melancólico e frio.

- Pagar o quê? A quem? Para mim, o preço mais alto é a minha paz e pago-o sempre que me comporto em desconformidade com o que acredito ser o correcto. Detesto-me quando me contrario e, por cobardia, limitação ou só porque a vida é assim mesmo, entro até à cintura no rio acastanhado de incoerências e falsidades que mantêm as coisas as funcionar. Odeio-me quando sou maricas e menor do que sei que sou. Fico infeliz. Deixo de conseguir fazer piadas. E quando perco o meu humor sei que estou a pagar um preço. Ficas realmente melhor quando vês alguém a ser castigado? Em termos práticos podes até obter algum tipo de reembolso, mas é minha convicção que o que obtens com as lágrimas de outro, devolverás com as tuas próprias. O caminho nunca poderá pela imposição. Não é o livre arbítrio o supremo direito que  nos é conferido? Quem somos nós para o impedirmos aos outros?

- Advogas então a impunidade - constatou com a franqueza de quem estava mais a querer entender do que a julgar- e consequentemente a anarquia. 

- Advogo a Imparcialidade. Viver e deixar viver. Cada um de nós faz a cama em que se deita, não é assim? É evidente que se faltares ao trabalho todos os dias, serás despedido porque o trabalho precisa de ser feito e de alguém que o faça. Se fores desagradável, mal-educado, rude, egoísta,  é certo que alguns se afastarão de ti, enquanto outros te responderão na mesma moeda. Somos, essencialmente, criadores. O patrão não está a ser “ mau” quando despede um funcionário que não cumpre as suas funções. Uma esposa não está a ser intransigente ou exagerada quando pede o divórcio por ter sido traída. Várias vezes. Ou apenas uma com a dor de muitas. Um amigo não está a ser injusto quando deixa de te ligar depois de meses sem que te preocupes sequer em tentar saber como ele tem passado. Estas decisões, traduzidas em acções que podem parecer punitivas, reflectem apenas o fim que é necessário com o que, à falta de se transformar, acabará por intoxicar.
Além do mais, o patrão que permite ao funcionário faltoso que continue, para usar o teu advérbio- impunemente, a aparecer ao serviço quando lhe apetece, está a descurar dos seus interesses, dos demais e o regular funcionamento da unidade. A bondade é muito diferente da fraqueza de espírito e o respeito pelas escolhas dos outros só ainda é respeito se não violar as nossas próprias e não nos corromper.  
A esposa traída que pede o divórcio, tem o direito a não viver para sempre na desconfiança perpetuada a cada atraso, a cada telemóvel desligado, a cada silêncio estranho do marido…Perante o reconhecimento sincero de uma suspeita inultrapassável, não será mais saudável cortar de modo definitivo aquela relação ao invés de consentir o envenenamento lento do que resta? O verdadeiro castigo, como eu o vejo, seria sujeitar os dois ao interrogatório diário “ Onde estiveste? Almoçaste com quem? Só agora?”. Isto sim seria fazer pagar. Esperar que chegasse a casa para olha-lo com “aquele” olhar. Soltar ocasionalmente uma insinuação maldosa. Fazer sentir àquela pessoa que agiu mal, em cada oportunidade ou beliscadela de medo num ego dorido. 
Isto é que para mim é fazer pagar e é disto que te estou a falar. Da necessidade, nem sempre consciente, de fazermos justiça pelas nossas mãos usando para isso a culpa que sabemos que o outro sente ou que o Todo votou como condenável. O que gente gosta de palmadas nas costas…
É esta a liberdade que advogo- de sermos responsáveis por nós. E apenas por nós. Permitir que os outros se criem e colham de acordo com o que querem, conseguem ou podem…Advogo a revogação de todas as fidelizações. Que sejamos todos livres uns dos outros. E que cada um seja livre de nós. Dos nossos julgamentos. Das nossas carências. Das nossas projecções. Da adolescência do nosso autoconhecimento. Frequentemente esquecemos que até os anjos caem. 

Afagou-lhe a mão.
- A redenção parece-me sempre possível diante da simplicidade com que vestes a vida. Faz sentido. Algo em mim festeja essas verdades que o cérebro, porém, ainda não processou inteiramente. Só o relance dessa tua visão de Liberdade já me deu alento para os perdões que quero e que vou distribuir. Compreendo agora a tal máxima que manda dar aos outros o que o queremos para nós.
Brindemos à nossa Imparcialidade e à revogação de todas as fidelizações! Que a tenacidade nos acompanhe e a memória desta fatia de tempo em que desejamos à Terra boa-sorte na procura de um novo Equilíbrio.

Ergueram os copos barrigudos e desejaram, no silêncio dos seus corações, boa-sorte a todos naquele mesmo processo.
IdoMind
about a truly new brave world

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