abril 11, 2013

Mínimos


Havia uma criança e um pacote de arroz. Havia eu especada olhar para ela a olhar para a etiqueta do preço. Dava-me um pouco acima da cintura, pelo que as prateleiras mais altas obrigavam-na a esticar o pescocito, dando a impressão de um pássaro bebé a confirmar se o mundo acabava nas paredes do ninho ou se havia mais qualquer outra coisa que lhe merecesse esforço de desembrulhar as asas para ir descobrir.
Depois de algum tempo desapareceu na curva dos enlatados. Eu andava de volta da massa. Voltou acompanhada por outra criança, mais velha e mais alta, mas com o mesmo ar, algo majestoso, aquele que têm todas as criaturas seguras de quem são e de como chegar onde querem. Deviam de ser irmãs. Após a verificação rápida de duas etiquetas de arroz agulha, trocaram o pacote e afastaram-se as duas num caminhar tranquilo, claramente satisfeito com o bom negócio que haviam acabado de concretizar. A missão fora cumprida e os passos orgulhosos indicavam estar preparados para o corredor seguinte.
Sorri para dentro. Acho eu. Espero eu…Sorri. Isso eu sei. Na minha cabeça surgiram duas equipas de crianças, uma formada pelas que os pais impedem de crescer e outra pelas que os pais não poupam ao crescimento. Aquelas duas, que não teriam mais de 7 e 11 anos, sabiam que o arroz não nasce na despensa lá de casa mas que se vende em prateleiras de supermercado. Que custa alguma coisa. É certo que muitas das nossas crianças estão familiarizadas com o custo da vida. Algumas até demais. Talvez me tenha apenas surpreendido o facto de se tratar de arroz. Que criança se preocupa com arroz? Se neste momento perguntassem às vossas  “Sabes quanto custa um pacote de arroz” elas saberiam responder ou iriam gritar “ Oh mãeee, o pai está esquisito outra vez!”?

Eu tive a sorte (hoje consigo chamar-lhe assim) de ser educada por uma mãe que desconhece o significado da palavra tabu. Assim, desde cedo que sei que existem realidades iguais e realidade diferentes da minha. Muitas, melhores. Outras, nem por isso. E umas ainda, nas quais já então suspeitava, que precisaria de ver-me envolvida para poder com legitimidade dar-lhes um adjectivo qualquer. Certo é que enquanto aprendia a ler, a escrever e a comportar-me, aprendia exactamente ao mesmo ritmo que a vida tinha Invernos e era preciso saber sobreviver-lhes. Com a roupa que se tinha.

Muitas crianças só conhecem o Verão. O Inverno não passa de um capítulo curto e ilustrado nos contos que lhes lêem antes de dormir. Isento-me de juízos de valor quanto à estação em que cada um cria os seus filhos. A questão é que eles crescem e saem de casa. Celebram contratos de trabalho, casam, namoram, fazem as duas coisas ao mesmo tempo, compram, vão ao cinema, têm um carro, fazem filhos…Asneiras.
Andam por aí e em certo ponto, cruzamo-nos. Esta é a parte que já me diz respeito.
Algumas crianças-Verão, quando crescem, nunca cresceram muito para lá do umbigo e é por isso que não se cruzam connosco, trespassam-nos.

Oiço-as a pedir sacríficos como se soubessem o preço do arroz. Governam-nos, dirigem empresas, têm vidas nas mãos, como se brincassem ao monopólio e não fizesse mal nenhum tanta irresponsabilidade.
Mas faz. Faz muito mal.
As crianças-Verão que só cresceram até ao umbigo, deviam ser mandadas para a primeira classe de novo para que experimentassem na própria pele uma lição ou duas sobre respeito. Sem brinquedos. Sem favores. Sem privilégios. Sem passadeiras vermelhas nem certezas. Fazer por merecer. Ter de lutar. Provar. Não conseguir mais. Chorar. Guardar as lágrimas para mais tarde quando o estômago dos filhos se calasse ou o banco parasse de pressionar. Inventar dedos para tapar buracos numa barragem que não pára de rachar. Escolher qual o medicamento que este mês não se pode comprar. Temer..Temer muito o amanhã.

Ah crianças-Verão, se soubessem o que quer dizer Exemplo não nos pediam o sangue sem dar uma gota do vosso. E nós talvez o déssemos de melhor vontade por uma Primavera que chegasse a toda a gente...
Como pode falar de cortes alguém que não sabe a cor do seu próprio sangue?
E agora, como é que vamos educar adultos tão baixinhos?

Havia uma criança e um pacote de arroz que me deram esperança na humilhação cansada que começa a sonhar com a Dignidade merecida.

IdoMind
about Our boat



4 comentários:

Anónimo disse...

mt bom...

IdoMind disse...

Olá Jeffrey

Muito bom é ter alguém a visitar-nos e a deixar um comentário tão simpático.
Obrigada :)

Marisa Borges disse...

Estou sem palavras. IdoMind Maria you've done it again!

Gosto de ti assim, a falar da realidade pelos olhos do coração, um pouco à Valter Hugo Mãe :)

Este texto devia ser lido na assembleia :P

Love ya

IdoMind disse...

Minha Shin linda...desculpe, Sr.ª Shin que agora já começa a ter uma idade respeitável :P

Cansada mana. Muito cansada da incapacidade de algumas pessoas calçarem outros sapatos. Mais apertados e muito mais gastos.

Há gente que não tem a menor noção da dor dos outros. Não têm mínimos...sequer de humanidade.

Valter Hugo Mãe, quem em dera!!! :) Adoro!

tks sis
love ya

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