abril 04, 2012

Planagens


Mais um almoço animado. Toda a gente com uma opinião a dar, uma posição a defender ou, como agora se diz, algo para partilhar. Fosse qual fosse o assunto a ser servido já alguém o havia provado antes, noutra casa, noutras férias, noutra discussão. Estava farto das bocas cheias sem espaço para garfadas de uma iguaria diferente, doutro tempero. Ocorreu-lhe que ainda tinham muito por provar e muitas digestões a fazer. Penitenciou-se no mesmo instante. Quem se julgava para julgar? Também tinha a boca cheia…
Penitenciou-se de novo por se ter contrariado e estar ali. Há muito tempo que não o fazia, que não estava contrariado onde e com quem quer que fosse. A solidão é um lugar perigoso onde nos desabituamos a nos habituarmos aos outros. Sabia-o. Porém, os outros ainda eram necessários e havia uma capa de normalidade a ser polida ainda que ocasionalmente. Para não o verem tinha de estar à vista. Também o sabia. Devia ter prestado mais atenção àquelas divagações soltas dela. Agora desejava tê-lo feito. Sentia a sua falta. Tanto. Era mais suportável o esforço de pertencer quando a tinha por perto. Até estes fins-de-semana haviam perdido o paladar enriquecido pelo toque dela.   

Deixou de ouvir o ruído e de pensar em bocas cheias. Estava a vê-la entrar pelo escritório de óculos, os boxers às riscas, que já eram mais dela que dele, e peúgas. A divina trindade como lhe chamava às risadas. As risadas… Se soubesse que ia precisar tanto de as ouvir de novo, teria gravado umas quantas para dias como este. Ter-lhe-ia dado razões para continuar a rir. Deixou o trabalho todo do lado dela e investiu-a da obrigação de inventar maneiras, renovadas a cada barreira, de os manter coesos, independentemente dos puxões exteriores. Assumiu que a força dela era mais forte que a dele e também inesgotável. Não era.

O que sabia sobre o amor tinha aprendido com ela. Aliás, a primeira vez sequer que o pronunciou, foi sem querer a meio de uma troca de impressões sobre um método controverso de tratamento da patologia objecto da sua investigação. Deu por si a falar de amor enquanto falava de trabalho. O amor tornou-se vulgar à mesa, no quarto, nas compras, na roupa para lavar. Quase equiparável a “ passa-me o sal” ou “que horas são” e igualmente proveitoso. O amor estava em todo o lado. Antes dela havia vocábulos ridículos e amor era um deles. Dor era outro. Não se amava nem se sofria. Não abertamente. Não expressamente. Dava-se um grito com mais facilidade que se dava um abraço e a critica afiada ultrapassava sempre a queixa sentida. Com a presença dela, a necessidade de defesa vigilante foi sendo dispensada pela ausência de qualquer ataque. Compreendera que ridículo é usar capacete, joelheiras e luvas dentro de casa.

Fora de casa também. Mas ela já ali não estava para lhe mostrar como é sair sem protecção. Também ainda precisava de sorrisos amestrados, dos sins neutros, de desculpas credíveis para as suas preferências que pareciam nunca coincidir com as dos demais. Só agora compreendia que ficou pelo primeiro nível de leitura e interpretou imprudência onde se falava de coragem. Só agora compreendia que ser genuíno é ser inteligente. Aparentar implica o esforço repetido de manter a aparência. É mais ou menos impossível fingir só por uma vez. Quando se finge vai ter de se fingir mais para escorar o fingimento. Vai ter de se continuar a sorrir, a dizer sim, a apresentar desculpas por tudo e por nada. Quer apeteça ou não. Talvez ao fim de alguns reconhecimentos profissionais, de umas amizades convenientes ou de problemas estrategicamente adiados, se perca o rasto à verdade a favor do que se chama saber-viver. Ela não. O rasto dela era íridescente. Ela sabia bem onde estava. Como voltar quando se afastava.

Não era como ele, ali hoje, deslocado. As pessoas que se vão colocando no lugar estão sempre bem colocadas. Quando não estão ou deixam de estar, deslocam-se de novo. Procuram outro lugar. Mesmo que muito muito deslocado do lugar de onde o querem colocar. Ouvira-a dizer várias vezes que o caminho do eremita é para alguns e do louco para a maioria mas que o Diabo nos prendia a todos enlouquecendo os eremitas e amadurecendo os loucos. Era por isso que uns nunca partiam e outros nunca ficavam. Poucos estavam. O segredo era estar.
Ele não Estava. Não queria ser louco, nem eremita e com o Diabo não queria mesmo nada. Queria só Estar. No seu lugar. Onde seria o seu lugar?

"A cada um de nós é confiado um extracto das nossas autobiografias. Só nos completamos na posse das partes dispersas, por aí, sob a guarda de quem menos esperas. Ou de quem esperas. Foi a forma que Deus arranjou dos irmãos falarem uns com os outros. Faz parte da nossa missão devolver essa parte ao seu dono. Ouve por isso com atenção os teus irmãos, procurando no que entregam o que te completa. E não retenhas o que não te pertence, vai fazer falta a alguém.”

Regressou à mesa, mais completo, porque aqueles irmãos lhe estavam a devolver a parte que contava da ilha longínqua onde há muito não se faziam entregas.

IdoMind
about places

4 comentários:

Onda Encantada disse...

OS elos, ainda que unidos podem funcionar individualmente, e é "esse individualmente" que está a ser oferecido de bandeja.
O universo proporciona oportunidades unicas para crescermos, e sermos nós próprios. Aprendermos a ser nós próprios, entre o Eremita e o Louco, talvez aprendamos a ser realmente o Mago que sabe colocar-se no seu lugar, O Certo, na sua hora, A Certa.

About positioning in life...

Love You!!!

Onda Encantada disse...

Become....

http://www.free-tarot-reading.net/live/ali/files/2011/07/The-Magician-267x400.jpg

IdoMind disse...

Ondinha

Já não sei sobre o que é...
Tentar, talvez, fazer diferente e melhor que ontem.
Não tenho resposta chica-esperta para ti hoje.

um abraço e nem eremita, nem louco, nem mago, nem nada.
Somedays all I want to be is a missing person :)

<3 tks...

Onda Encantada disse...

You underestimate the force!!!!

BIG HUG!!!!

Love ya

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