fevereiro 08, 2011

Insólitos Ido


Hora: 21h45m. Local: Pingo Doce.

Habitualmente, faço as minhas compras cerca de vinte a quinze minutos antes do encerramento do super mercado. É quanto me basta para escolher os legumes, a fruta, agarrar 500 gramas de tofu, outras 250 gramas de seitan e, nas semanas difíceis, ir buscar um Toblerone e uma caixinha de bombocas.

Gosto de ir quando tudo está silencioso. Mais quieto. A hora em que as mães estão a fazer as coisas próprias de mães e os pais entretidos no Facebook. Não é porque me considere melhor que qualquer outra pessoa para me misturar com elas no cumprimento das tarefas mais prosaicas. Tem a ver com o meu pragmatismo. Prefiro os corredores desimpedidos. Sem a gritaria das crianças já cansadas, arrastadas pela secção da higiene e presas pela mão, enquanto a sua progenitora decide se tem o cabelo normal, oleoso ou seco. Para mal dos pequenos, ainda se puseram a inventar os caracóis perfeitos e o liso escorregadio…
Eu e o meu carrinho, numa condução suave e tranquila, estacionando sem tropeços junto às minhas prateleiras. Que, àquela hora, já estão repostas. Outra vantagem das compras tardias.
E não há filas.

Na caixa, um homem à minha frente aguardava a saída do talão e outro, atrás de mim, segurava duas caixas de lâmpadas. Simpática, como me é natural, disse ao senhor das lâmpadas que poderia passar-me à frente, uma vez que não está a ser uma semana fácil, e, além do Toblerone e das bombocas, mesmo por cima da courgettes, jaziam várias embalagens de gomas.
- Agradeço, mas tenho todo o tempo do mundo - respondeu-me com um sorriso descontraído, como quem tinha, de facto, todo o tempo do mundo.
Sorri de volta.

- O Woody Allen tem razão, sabe?
- Também acho - respondi-lhe - na minha próxima vida também quero vivê-la de trás para a frente- e pisquei-lhe o olho.
Percebi que ficou surpreendido. Não esperava com certeza que uma devora-gomas (reparei que tinha mirado de soslaio a minha terapia em forma de tijolinhos e ursinhos cobertos de açúcar) fosse capaz de ler pensamentos e muito menos que soubesse alguma coisa sobre o irreverente realizador Nova Iorquino.
Sorrimos os dois.

- É verdade... Agora que sei tantas coisas, não consigo fazer outras tantas. (Devia andar a passear pelos cerca de cinquenta e poucos anos). Agora que sei o que importa, vejo, com algum lamento, que não dei importância à vida. A maior parte de nós anda muito enganado quanto às nossas prioridades. Eu andei. E agora, com tempo para tudo, nada tem tempo para mim. A terra continuou a girar enquanto estive parado a achar que estava a viver.

E ficou a olhar para alguma coisa que não estava ali. Ou que eu não via.

- Mas olhe que a Terra é redonda. Passa muitas vezes pelo mesmo lugar. Ela não pára, mas espera. Espera por nós sem parar - pensei eu em voz alta, sem a cabeça ter ido a tempo de ajudar-me a não ser chica-esperta.

O rapaz da caixa, ouvia-nos congelado. Não demonstrava grande pressa para ir embora. Também lhe li o pensamento: “ Está qualquer coisa a escapar-me, mas esta m***a é profunda...”

O senhor das lâmpadas, fixou-me e perguntou num tom pesado:
-  E o que ficou para trás?
- É lá que deve estar - afirmei com a certeza de quem sabe o quanto custa caminhar carregada de malas com roupa que já não serve.
- O que foi apenas serviu para nos preparar para o que pode ser. Se há coisas que diz que já não pode fazer, não perca esse tempo que diz que tem, e faça as que pode.
Quando me inteirei da minha insolência, pedi-lhe desculpa. Quem era eu para estar com conselhos. Eu! Cuja vida dava, mesmo, um filme indiano!
Sem pedir autorização, deu-me um abraço.
- Não peça desculpa por ser espontânea. É na espontaneidade que se esconde a nossa essência. E eu gosto da sua.
Engoli em seco enquanto pensava "oh Meu Deus!"

Eu e o senhor das lâmpadas saímos juntos do Pingo Doce, acompanhou-me até ao carro e convidou-me para almoçar esta semana juntamente com a esposa.

Não toquei no Toblerone, nas bombocas e num tijolinho sequer…
Idomind
about going with the flow


Para quem não conhece fica o texto do Woody Allen:

"A minha próxima vida”, de Woody Allen
Na minha próxima vida quero vivê-la de trás para a frente. Começar morto para despachar logo esse assunto. Depois acordar num lar de idosos e sentir-me melhor a cada dia que passa. Ser expulso porque estou demasiado saudável, ir receber a pensão e começar a trabalhar, receber logo um relógio de ouro no primeiro dia. Trabalhar 40 anos até ser novo o suficiente para gozar a reforma. Divertir-me, embebedar-me e ser de uma forma geral promíscuo, e depois estar pronto para o liceu. Em seguida a primária, fica-se criança e brinca-se. Não temos responsabilidades e ficamos um bébé até nascermos. Por fim, passamos 9 meses a flutuar num spa de luxo com aquecimento central, serviço de quartos à descrição e um quarto maior de dia para dia e depois Voila! Acaba como um orgasmo!

10 comentários:

Marisa Borges disse...

Que lindo Ido, que lindo mesmo!

Também gosto muito mais de ti quando és espontânea, quando és criança livre e descomplexada, quando és mais tu. Adoro quando nos mostras como é possível sermos com quem não conhecemos e com quem conhecemos também. Adoro ver-te feliz e a cumprir a tua caminhada. As gomas devem ser guardadas para bons momentos também, não apenas como punição de dias maus ;)

O Woody iria gostar de saber desta conversa, daria com certeza uma bela cena num seu filme qualquer :*

BEijos e estou muito orgulhosa (no bom sentido)

IdoMind disse...

" As gomas devem ser guardada...." o que tu queres sei eu!!! lol

Isto é o resultado de nunca nos terem advertido para não falarmos com estranhos...

Um dias destes sou notícia no 24horas.

beijos minha Shin

Maria de Fátima disse...

Olá querida Ido, é tão bom ser-se espontânea, mas por vezes também é difícil ser-se assim.Beijocas grandes.

Onda Encantada disse...

Ido, deixaste-me emocionada.

Fiquei com um sorriso parvo, daqueles que portamos quando estamos "in love"...
Mas o meu sorriso foi mesmo de satisfação plena.

É tão bom quando nos acontecem essas coisas. Foi bom para ti, e foi bom para o senhor que portava a luz por se acender... talvez lhe tenhas dado o fogo que faltava para alumiar o seu caminho com aquelas lampadas que levava consigo.

Que lindo, 'miga!!! Mesmo!!!

E não é linda a VIDA???? :))))

Pequenos momentos de felicidade... que enchem o coração...

Marcia Toito disse...

Eu bem que poderia te encontrar nun desses mercados que frequento,não é mesmo?

Pingo Doce,doces palavras.

obs.qualquer dia vou narrar uma das minhas história de mercado, heheeh, bjos!

IdoMind disse...

Fatinha

Ser espontâneo é sempre fácil, controlar isso é que acho que é mais difícil.
A resposta é sempre a mesma: temos de ser nós.
Beijos

IdoMind disse...

Ondinha

A vida é linda realmente.
E sabes, quando ia para casa ocorreu-me que pensamos tanto a vida que nos esquecemos de só senti-la.
Não temos de perceber tudo. E logo. É deixar que ela se mostre. Que os encontros aconteçam e dar o melhor de nós. Foi isso que aconteceu no Pingo Doce.

Havias de ver a cara do puto que estava na caixa :))))

Gosto muito muito de ti Ondinha
e também tens pinta de quem dá conversa a senhores das lampadas...

Cristina Paulo disse...

Ido...como tu também adoro ir fazer as compras bem tarde. Ás vezes não dá por ser mãe e fazer as coisas que as mães fazem...mas como a minha fada diz...eu sou uma mãe muito á frente lol
Conheço bem a terapia do chocolate heheheh a das gomas deixo-ta só para ti. Mas não há melhor terapia que a espontaneidade e a partilha verdadeira. São momentos em que se dá aquele clique e tudo muda, não há nada mais bonito que vermos o Sol nascer numa pessoa :)
e de volta ao terreno...acabaste de me lembrar que tenho de repor o stock de Tofu e Seitan :S
Mil sorrisos para ti
Namasté!

IdoMind disse...

Márcia

Não me importava de fazer umas comprinhas no Brasil, sobretudo em dias como estes que chove em Portugal!

Fico à espera das aventuras de "Márcia vai à compras..."

Beijinhos

IdoMind disse...

Siala

Minha linda! Adoro ver-te por aqui.
A terapia do chocolate só é má porque depois obriga à terapia do ginásio..lol

E concordo, seríamos muito mais saudáveis se simplesmente fossemos espontâneos e nos déssemos à verdadeira partilha. Isto de escondermos quem somos...o chocolate é o menos...

E é bem bonito sentirmos o sol nascer em nós...

Um abraço e boas compras ;)

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