janeiro 18, 2013

Voltas?


Já sabiam tudo quando se conheceram. Talvez o problema tenha sido esse, sabiam demasiado. Estavam de tal forma preenchidos de sabedoria, que não havia por onde entrar ou se arrumar sequer uma única novidade. Nem dentro, nem entre eles.
Ele era mais velho e era homem. Sabia, portanto, tudo sobre mulheres. Que eram iguais. Que sentiam o mesmo e mais ou menos por volta das mesmas idades. Que tinham desejos parecidos e o mesmo filme implantado no cérebro, accionado automaticamente perante certas, e as mesmas, circunstâncias.
Assim, quando a conheceu, já julgava que a conhecia. Não seria por isso preciso perder muito tempo a ouvi-la. A Ela. Era mulher e o seu género era o seu cartão-de-visita. O resto eram pormenores com pouca influência na opção do modo de operar com os seus mecanimos. Tratava-se apenas de selecionar o programa e a velocidade.
Esta era intelectual. Rotulou-a assim. Reservada. O que constituía o principal desafio. Teria de arranjar forma de chegar ao painel de controlo antes de ser expulso e de impedida permanentemente a sua entrada. Com esta teria de ter arte...
Era a segunda vez que tinham estado juntos. Achou-lhe graça e achou-lhe força. Ali à mão mas inacessível. Uma espécie de praia privada. Ficou curioso e com vontade de um mergulho.
Sentou-se diante do computador e fez uma busca rápida pelas redes sociais. Uma análise oblíqua do perfil do seu objecto de estudo iria ajudar a traçar a melhor aproximação. Enganou-se porém e teve de fazer à maneira antiga: convidá-la para jantar. Gostou disso. Soube-lhe bem ir às escuras ter com uma mulher sem saber sequer como lhe chegar à boca.


- Um engate vintage – pensou e riu, enquanto dava os últimos retoques na aparência que, esperava, fosse do agrado da sua companhia.
Tempos mais tarde, na cama, confessou-lhe que antes de a conhecer ela já lhe tinha dado o que pensar. Constatou naquela noite que não tinha um estilo. O seu guarda-roupa era uma espécie de encontro ecuménico da indumentária. Não se tinha apercebido, até àquele momento em que estava a escolher o que vestir para o jantar, que não se vestia para si, apenas para os outros. Conforme a música, assim a dança… Preocupava-o mais a impressão que queria causar, do que o conforto de ser ele mesmo. Pela primeira vez sentiu-se uma farsa. E muito feminino também, emaranhado em dilemas sobre o que vestir.
Telefonou ao irmão e pediu-lhe roupa emprestada. Disse-lhe exactamente o que queria. Adorava vê-lo  com aquelas calças de corte irregular e a t-shirt com mau feitio a perguntar “ o que é que foi?” de nariz empinado. Só o casaco que usou nessa noite era sua propriedade, o resto da roupa foi-lhe entregue pelo irmão, à porta, sem perguntas e com uma expressão engraçada entre o curioso e o esperançado.
Ele contou. Ela ouviu. Não ouve riso. Não houve conversa. Antes ficaram quietos, olhando-se, sem conscientemente conseguirem, ou sequer tentarem, compreender a importância do que acabara de ser partilhado, mas sentindo-o intuitivamente muito importante para o que seguiu.
É verdade tudo o que dizem sobre alguns silêncios, falam mais do que tudo quanto possa ser dito.

Quando saíram do restaurante, ele soube que não queria que ela saísse da sua vida. Não para já pelo menos. Queria mais jantares às escuras ou à luz da lua que ela mordera, irradiando, desde essa dentada original, igual mistério. E distância. Ela tinha isso de estar sem ficar, o que o desorientava mas lhe mantinha a órbita alinhada em torno dela.  
Agora já conseguia dizer o que o tinha maravilhado. Perdido. Maravilhado outra vez. Transformado, para sempre. Ela tinha estilo. Sabia quem era sem nunca fechar a porta a ser outra coisa qualquer. Permanentemente impermanente, como uma vez lhe disse com a tristeza poética de quem já tocara alguns limites sem contudo os desafiar.
Mas como é que se lida com a impermanência? Ele queria um apartamento cheio de raízes no centro da cidade. Ela vivia num barco.


Ali estava ele, em terra segura, no apartamento no centro da cidade. Ela, só Deus sabia.
Serviu-se de mais uísque e para a ter de volta naquela noite saudosa, no sofá onde adormeceram tantas vezes embrulhados a ouvir música, colocou “I am a bird now” e ficou a beber ambos.
"Deve ser isto a que o Rui se referia no outro dia quando falou de inteligência emocional"  pensou para si depois de lhe ocorrer que quis tanto controlar o tempo, que o Sol desapareceu. Exigiu  entrega sem se doar e do que a acusava, ele mesmo era culpado. Com medo de perder o controlo, perdeu tudo.
O que é que tinha custado ter as mãos disponíveis para ir com ela ou para a esperar do outro lado dos túneis por onde se metia para ir ver o que via nas suas próprias trevas. Ele podia ter sido a luz firme lá ao fundo. Julgou-a quando só precisava de a amar.
Foi apanhado desprevenido porque não esperava que uma mulher não esperasse nada. Dele. Com ele. Confundiu-se por isso e tomou por leviandade a certeza na Perfeição. Cheio de medo, escondeu-se. Refugiou-se nas trincheiras onde guardava as armas do costume e cujo uso frequente lhe deu mestria. Neste não digo isto, para não provocar aquilo e faço assim porque sempre fiz, deixou-a ir embora sem nunca se ter apresentado. Nem ter tido o prazer de a conhecer de verdade. Para não chorar com ela, chorava agora por ela…
É assim que se impede a vida de nos fazer viver, amputando-a da surpresa de se ir revelando no que acontece e no que deixamos que aconteça.Se não soubesse tanto quando a conheceu, ter-se-ia mostrado e talvez ainda estivessem a crescer entrelaçados no sofá e pela vida, ajustando-se cada um para caber o outro.
Quem lhe dera poder voltar a Montauk pela primeira vez, outra vez, e encontrar lá a sua Clementine.
Onde andaria ela…?

(to be continued)
IdoMind
About... a lot.

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